Masterclass com Rui Bento: Como construir uma “dream team”

por The Next Big Idea | 3 de Março, 2023

No dia em que se preparava para lançar a Kitch, Rui Bento e a sua equipa perceberam que estavam a resolver um problema que a pandemia da covid-19 “eclipsou”. Tiveram 48 horas para dar a volta ao negócio, o que só foi possível graças à qualidade da equipa que tinham montado. A players choose A players”, diz. A “densidade de talento” numa equipa faz toda a diferença, sobretudo quando a realidade nos puxa o tapete.

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O “momento certo” para criar uma startup

Rui Bento é engenheiro informático de formação, mas rapidamente percebeu que a sua paixão era outra. Depois de um MBA em Berkeley, São Francisco, e uma passagem pela Microsoft, “era óbvio que não ia voltar para engenharia”. No regresso à Europa integrou a equipa ibérica da Grupon, ficou mais perto de casa, com responsabilidade sobre vendas, num grupo cuja ambição era expandir para a América do Sul. Alguns meses depois, uma proposta da Apple levou-o até ao Reino Unido e a ideia era “ficar a longo prazo”, mas em 2014 recebeu uma chamada: “Queres lançar a Uber em Portugal?”. A resposta não tardou, e Rui Bento embarcou naquele que seria um dos seus maiores desafios profissionais.

“Comecei a usar a Uber em Londres e facilitava-me verdadeiramente a vida. (…) Em 2013/2014 era absolutamente extraordinária essa mudança na forma como nos podíamos deslocar nas cidades e isso marcou-me profundamente”. Foi numa sala de 10m2 com quatro pessoas — “muita humanidade num espaço pequeno” — que tudo começou. É aí que se cruza com o Nuno e Filipa, que mais tarde o acompanhariam na aventura de criar a Kitch.

A saída da Uber para fundar a sua própria empresa aconteceu quando Rui Bento já estava com vários mercados à sua responsabilidade e o tamanho da equipa multiplicava em muito o espaço disponível naquela sala de 10m2. “A minha função tinha mudado, no início estava muito perto do negócio e quando saí, em 2019, já tínhamos várias camadas, vários gestores, equipas mais robustas. A Uber mudou muito, já não era uma startup e eu nesse momento senti que queria voltar a ter essa proximidade. Sempre quis trabalhar em sítios early stage“.

Como gerir uma avalanche mediática

Rui Bento estava numa entrevista quando alguém entrou na sala e entregou uma folha à jornalista. A pergunta que se seguiu apanhou-o completamente fora de pé. O que tinha a dizer sobre os taxistas que estavam a bloquear a zona de acesso às partidas e chegadas do aeroporto de Lisboa, em protesto contra a Uber?

“Mas houve um momento no tempo em que decidimos lançar um produto diferente, que era o UberX, que era uma alternativa de mobilidade muito mais acessível. (…) A partir daí nada foi o mesmo, abertura de telejornais, contestação…”, conta. Como lidar? “O meu papel não era diferente, o que tinha de fazer para cumprir esse papel é que mudou. “Sabíamos que isto [a contestação] tinha acontecido noutros países, mas antecipar e perceber que impacto teria no meu dia… Tinha o telefone sempre a tocar, houve uma pressão mediática muito grande, que aconteceu quase de um momento para o outro. Senti-me forçado a dar um passo atrás e decidir se era algo para o qual estava preparado, se fazia sentido ser eu, e por quanto tempo, e houve também esse momento em coletivo, com a equipa”.

Para dar resposta ao desafio, “aproximámos muito a equipa, para termos uma noção clara de quais eram os nossos objetivos. Sabíamos que havia ali três ou quatro coisas que não podíamos falhar, e depois foi trabalhar a comunicação entre a equipa”. Por exemplo, conta, “todos os dias cada um de nós enviava um e-mail com o que estava a fazer, áreas de foco e preocupações. Então sabíamos o que se estava a passar e podíamos ajudar-nos uns aos outros”.

O produto certo no momento errado. E agora?

“Tudo o que for possível fazer para aumentar a probabilidade de um negócio funcionar vale a pena investir tempo”, diz Rui Bento. E o percurso que fez foi fundamental para o lançamento da Kitch, a sua própria empresa. “Eu sabia que havia muitos buracos no processo para os restaurantes se digitalizarem, e a Uber Eats ou a Bolt Food eram só uma parte da solução”. Mas antes mesmo de decidir que solução seria essa, “vieram as pessoas”, Nuno e Filipa. “O nosso processo de decisão foi: quais as áreas em que queremos e gostamos de trabalhar?” Fizeram “uma matriz das ideias” e depois escolheram aquela que mais os entusiasmava e em que tinham maior probabilidade de sucesso.

E mesmo reconhecendo que “hoje os ciclos são mais rápidos — falha-se mais rápido e encontram-se indicadores de sucesso mais rápido”, Rui Bento procura contrariar a ideia de um processo linear para todas as startups. “Há uma ideia de que fazer uma startup é enfiar as pessoas todas numa sala e daqui a um ano é tudo uma maravilha: crescemos rapidamente e somos todos líderes globais. Quando acontece são exceções e devem ser entendidas como exceções. Isto [na Kitch] é um percurso a longo prazo e estamos disponíveis para investir anos da nossa vida”, diz. A seu ver, “quando se funda uma startup é importante ter um compromisso com anos”, porque “quando as coisas funcionam, normalmente demoram tempo”, reitera, alertando para a “ilusão” de gratificação imediata.

E o que é a Kitch? “Queríamos resolver um problema que existia na restauração para vender online. Muitos restaurantes não estavam naquela altura [2019] a fazer delivery porque não tinham capacidade para isso. Abriam portas ao 12h00 e ao 12h10 já estavam com uma fila à porta”, ou seja, não tinham cozinha suficiente para satisfazer o serviço de sala, mais as entregas. “Passámos muito tempo do nosso primeiro ano a falar com os restaurantes e a Kitch era um produto que usava tecnologia para tornar o delivery muito mais fácil — tão fluído como servir à mesa —, além de lhes dar espaço de cozinha adicional, para terem a capacidade de chegar às pessoas” que faziam pedidos online. Ou seja, a Kitch associava uma solução tecnológica às chamadas dark kitchen para aumentar a resposta dos restaurantes.

O primeiro desafio foi encontrar um espaço em Lisboa — “chegámos a ver garagens e até cinemas abandonados e meio submersos” —, mas isto não era nada face ao que estavam prestes a enfrentar. No início de 2020 já tinham encontrado e remodelado um restaurante que tinha fechado para servir de dark kitchen, e definido uma data para abrir: 13 de março, sexta-feira. A data é marcante, ou não fosse o dia em que, por causa de uma pandemia, os restaurantes fecharam portas, antecipando o que viria a ser formalizado poucos dias depois, a entrada em estado de emergência, com confinamentos sucessivos. Agora, “o que os restaurantes tinham de sobra era espaço de cozinha, porque deixaram de ter clientes a entrar-lhes portas adentro”.

Este foi para a Kitch “um momento de viragem. Percebemos que os restaurantes iam precisar de delivery mais do que alguma vez tinham precisado, mas a nossa solução [de dark kitchen] não era adequada às novas necessidades, porque estávamos a resolver um problema que se tinha eclipsado naquele fim de semana”. Em tempo recorde, dois dias, tiveram de repensar o produto e a proposta de valor da Kitch. E conseguiram.

Rui Bento atribui o sucesso à agilidade da sua equipa, mais focada em ser útil do que amargurar pelos meses dedicados a trabalhar num produto que a realidade tornou desnecessário por um período de tempo que não era possível dimensionar. “A principal transição, todavia, acabou por ocorrer nos meses seguintes. Chegámos a lançar a primeira e a segunda cozinhas, mas percebemos que a nossa solução tecnológica era muito mais útil para os restaurantes e fazia sentido que isso fosse o nosso core. Essa foi a experiência mais dolorosa, ter de fechar as cozinhas que tínhamos aberto. Podíamos ter perdido pessoas nesse momento, mas não perdemos”.

Construir a equipa de sonho

A players choose A players. B players choose C players“. A frase partilhada por Rui Bento faz eco quando lhe perguntamos como é que se monta uma equipa de sonho para fazer vingar uma empresa. A equipa da Kitch “levou cerca de um ano a construir” e Rui Bento assumiu-o como uma “prioridade”.

“Foi uma decisão consciente [investir tempo na formação da equipa da Kitch], e tem de o ser, porque a corrente nos puxa para um milhão de fogos que temos de apagar no dia-a-dia. Mas recrutar pessoas é um investimento de longo prazo. Vamos demorar meses a encontrar a pessoa certa, mais não sei quanto tempo até que essa pessoa comece a produzir resultados, mas a única maneira de estar num sítio melhor daqui a um ano é deixar isto [o problema imediato] arder e ir buscar o talento certo que me vai ajudar a resolver problemas daqui a seis meses. (…) Se não tivéssemos trazido essas pessoas não teríamos conseguido montar a Kitch”, assume.

E que pessoas são essas? “O que precisávamos no momento inicial da Kitch eram pessoas capazes de pensar as suas áreas e fazer crescer as suas áreas, e para isso foi importante ir buscar pessoas experientes. Uma pessoa mais experiente custa mais, mas a probabilidade de correr bem é maior”, resume. Pelo que “às vezes é melhor ter menos pessoas, mas mais densidade de talento”.

Portanto, se é para investir, que seja em A players. “Um talento forte tem a noção de que ter pessoas extraordinárias à sua volta, melhores do que si próprio, é fundamental, porque o sucesso depende da qualidade das pessoas à sua volta. B players preferem ter pessoas em quem possam mandar”.

Especial Únicos

O projeto “Únicos” propõe-se dar resposta à pergunta sobre o que torna uma empresa única e de que forma essa aprendizagem pode ajudar outras. Fizemo-lo num projeto em parceria com a Google e a Shilling que se divide em três iniciativas:

  • Uma série de televisão na SIC Notícias e na SIC Internacional, cuja estreia aconteceu a 2 de outubro e cujos episódios pode rever aqui;
  • Um conjunto de masterclasses com fundadores de startups portuguesas que se tornaram globais, onde estes partilham o seu percurso e aprendizagens, que pode encontrar aqui;
  • O Prémio “Únicos, que apoiará com mais de 150 mil euros (entre investimento e serviços Google) uma startup que possa vir a integrar esta nova geração de empresas portuguesas que são líderes ou candidatas a líderes nos mercados globais onde atuam.