Web 1, 2 e 3 ou mesmo 5. A nova internet devolve-nos a liberdade que perdemos?
por Rute Sousa Vasco (Texto) | 11 de Julho, 2022
Houve um tempo em que a ideia de um mundo sem tecnologias era simplesmente absurda. Esse tempo não foi há muito tempo, mas há 25 anos, quando para a maioria das pessoas a internet era “apenas” tecnologia. Foi esse o ponto de partida de uma conversa que mantive com o Vítor Magalhães, fundador da Byside e promotor do Festival Elétrico, numa viagem sobre uma história que acompanhamos os dois há quase mais de duas décadas e que vai da primeira internet – ou web1 – à promessa de refundação da internet – a tão atual web3.
Como olhas para a evolução das várias etapas da internet?
Tenho tido a sorte de assistir a estas três fases da web e esta web3 entusiasma-me imenso por tudo o que representa de futuro e com uma sensação muito próxima de que há uma grande desconhecimento como havia na web1.
É o mesmo desconhecimento?
As pessoas agora conhecem pelo menos os temos. Já toda a gente ouviu falar, mesmo que a maioria não saiba o que é [a web3].Eu conto esta história diversas vezes sobre o dia em que a minha mãe me liga contentíssima e feliz porque ouviu falar da minha empresa numa telenovela e aí sentiu que era uma coisa completamente nova e que o filho trabalhava numa coisa importante.
Estamos a falar da web3 como se falou da web2? É que a web1 ninguém sabia sequer que era a web1 …
A web2 passou relativamente despercebida no início, só se começou a perceber depois. E quando agora falamos ainda nem se sabe bem como começou. As pessoas associam a social media, mas poucas se lembram de um Digg ou Kevin Rose. Para mim, se houve um nome associado à Web2 é Kevin Rose, para a maior parte das pessoas é Facebook. As pessoas começaram a usar social media, a participar mais na internet, mais à frente apareceu o nome e as pessoas perceberam que havia ali uma mudança. Na web3 acontece um pouco o contrário: é anunciada, discutida e falada antes de as pessoas perceberem o que é e antes de passarem por lá.
Há quem diga quem 2022 é para a web3 o que o ano de 1998 foi para a web2. Ou noutra analogia, que na web1 podíamos assistir a um jogo de futebol ou basquetebol, na web2 podíamos jogar e … na web3?
A web3 é a altura em que toda a gente acha que é dona da equipa ou pelo menos treinador da equipa ou que influencia de alguma maneira. Discutível se vai ser assim. A parte da descentralização que está muito associada ao mundo da blockchain e das cripto está 100% associada à web3, mas há muitas vozes críticas que dizem descentralização, sim, mas há sempre alguém que está lá no centro daquilo que é descentralizado. Sejam empresas de venture capital que controlam financeiramente, sejam entidades que não são tão descentralizadas quanto isso e temos vários exemplos na própria blockchain.
Portanto, não és um crente na descentralização?
Não sou um crente. Gostava de ser. Conceptualmente é extremamente interessante podermos pensar em viver num mundo em que todos podemos ser donos de tudo, a verdade prática diz-me que não é bem assim. Pensar que um Facebook vai deixar de ser um Facebook e que vamos poder ganhar com o que fazemos de uma forma descentralizada, tenho muitas dúvidas que vá acontecer.
A web3 ganhou forma como ideia como um regresso à pureza da internet, ao início da internet. Uma espécie de power to the people em que se deixe de ser carne para canhão da tecnologia e das grandes tecnológicas. Alguma vez a internet foi verdadeiramente livre e alguma vez podemos ambicionar que o seja?
Acho que a internet nunca chegou a ser completamente livre e à medida que o crescimento vai acontecendo e temos entidades que olham para estas tecnologias como negócio puro, o controlo existe sempre. Web3 não é um termo novo, aparece lá atrás muito associado à componente semântica da inteligência artificial sobre a web, agora com blockchain te uma dimensão completamente diferente. Pensar em descentralização pura é o lado bonito da bitcoin – acho a bitcoin a coisa mais pura que existe nesta nova vaga de web3 em termos de tecnologia e de conceito. Tudo o resto à volta de bitcoin acho que é só romântico, mais nada.
Tudo o resto é o quê? NFTs é romântico?
NFTs como princípio de base é incrível, as aplicações são incríveis. Mas hoje em dia quando alguém ouve falar de NFTs a referência imediata é Open sea e Bored Apes e não é isso de todo. O lado bonito de um NFT não é isto, é poder desintermediar a associação entre identidade própria de alguém ou propriedade sobre algum tipo de bem e não uma imagem que custa dois milhões. Pensar o que pode significar nas várias componentes artísticas passar a ter esta desintermediação e ter o criador mais próximo do público é bonito, é romântico e é prático – pode acontecer mesmo. O Spotify nesta altura está a fazer um investimento gigante em NFTs, não sei qual é a visão, mas parece-me demasiado óbvia para não ser esta: uma plataforma que já tem um público criado e que tem uma comunidade de criadores que até aqui não eram monetizados da forma certa, podem usar a plataforma para chegar de forma direta ao seu público. Isto é gigante em termos de conceito, pode mudar outra vez tudo no mundo da música, por exemplo. Há outras aplicações também interessantes como a validação de identidade e autenticidade para colecionadores de relógios ou de vinho.
Web3 é um termo já de 2014, cunhado por Gavin Wood, que ajudou a desenvolver a criptomoeda Ethereum e lidera a Fundação Web3 e fundou também o Polkadot. O que falta para tornar a Web3 mainstream, quase 10 anos depois de ter sido cunhado o termo ou qual poderá ser o momento iPhone da Web3?
Não sei se vai haver esse momento e agora há aqui uma nova definição. O Jack Dorsay, agora na Square e um dos fundadores do Twitter, é uma das vozes mais críticas sobre a web3 e tem uma visão muito particular. Está a lançar o termo da web5 que não é mais do que dizer que temos a web2, temos a web3 que não vai ser nada mas se juntarmos as duas temos a web5. Do lado técnico, a web3 sempre foi muito conotada com inteligência artificial e machine learning, e isso é algo que está a acontecer de forma natural, conotada com edge computing, que é uma coisa demasiado técnica para a maior parte das pessoas, e a descentralização que não é o que me atrai mais na web3. A componente que me parece ser mais crítica e que eu acredito mais na web3 tem muito a ver com o tema da identidade. Daqui a algum tempo toda a gente terá uma wallet que possa ser de uso geral e que possa permitir transações com dinheiro normal e com cripto, com tokens distintos, e utilizada na internet em qualquer sítio. Pode parecer muito básico mas é muito transformador. Tem impacto em vários setores, no marketing digital, por exemplo, é tudo novo. Cada pessoa poder controlar quem ela é quando acede a uma página, controlar a privacidade, ter mecanismos de interação com marcas, de monetização – para mim este é o grande ponto de mudança.
Como é que o império contra-ataca nisso tudo? O negócio das grandes tecnológicas está assente na utilização dessa informação …
O contra-ataque não vai acontecer tanto neste mundo, pelo menos para já. Mas para os criadores, as marcas vão ter de gerir a monetização de forma diferente – isto é mais negócio puro do que tecnologia.Se olharmos para o Youtube que todos dizem que está a ser ameaçado pelo TikTok percebemos que é mais fácil para um pequeno criador monetizar no TikTok do que no YouTube onde já é preciso ser uma indústria. Não é a tecnologia que dita o sucesso dos projetos de internet, eu diria que é mais a capacidade comercial.
O impacto ambiental da tecnologia blockchain é um dos grandes temas. A web3 precisa de uma tecnologia mais eficiente que a blockchain?
Todo o caminho aponta para passar de proof of work, que é como a bitcoin funciona em termos de mineração e de controlo de blockchain e que tem um impacto energético e ambiental grande, para proof of stake (onde está a Ethereum 2.0 com todo o atraso que tem tido), o Kardan já o faz. Não sei se não aí mais um ponto de contra-ataque da indústria do que propriamente ser realidade. Os impactos ambienteais existem e devem ser acautelados, claro, mas grande parte das pessoas, eu incluído, olhamos de forma errada porque não sabemos o impacto real que temos. Energeticamente a mineração de bitcoin com proof of work não é a melhor, mas nos Estados Unidos já existem miners que usam só energia solar. Em termos de protocolo, o proof of work é muito mais bonito que o proof of stake, mais aí já é uma questão mais técnica.
Estima-se que no mundo existam hoje 50 milhões de criadores e que esta economia valha 100 mil biliões de dólares. Sendo que no YouTube, a plataforma favorita de muitos, os milhões de uma minoria ofuscam o facto de mais de 97% dos criadores não ganharem acima da linha de pobreza nos EUA . Nos criadores de jogos ganham mais em P2E (play to earning) do que streaming na Twitch.
Há aqui uma luz ao fundo do túnel para os criadores, a web3 é um novo renascimento para a arte e a criatividade?
Há uma nova internet a acontecer, sem dúvida. Muita gente já associa esta fase atual ao rebentar da bolha em 2000, temos aqui um hype gigante com tudo o que tem a ver com cripto e blockchain e agora estamos na fase contrária em que muita gente acha que isto morreu de vez.
Não há meio termos, ou é ótimo ou é péssimo …
É ver quantas vezes já se disse que o bitcoin estava morto desde 2011. Mas as mudanças estão a acontecer e têm um impacto futuro que é inevitável. Há uma nova web a ser criada, há novas tecnologias que vamos adotando, há uma aceleração muito maior face ao que acontecia no passado.