A organização da Web Summit manteve-se imperturbável no que respeita aos números referentes à edição de 2023: basicamente, pelos dados oficiais, nada mudou, apesar da demissão de Paddy Cosgrave e da ausência de algumas das principais Big Tech. O evento contou com 70 mil participantes, oriundos de 153 países, e a organização garante que se bateram recordes.
A sensação térmica de quem esteve presente não foi exatamente essa. Circulou-se melhor durante os três dias – o que significa que não havia multidões compactas a chocar entre pavilhões e nas áreas de maior atenção -, houve cadeiras por ocupar, em vários momentos, na plateia do Centre Stage e até nas filas para almoço se notava maior fluidez.
Significa isto que foi um pior evento?
Significa outras coisas, mas não necessariamente isso.
Vamos ao contexto. 2023 foi um ano de travessia no deserto para a maior parte das startups à procura de investimento. A situação económica global, impactada por uma guerra que se arrasta há quase dois anos e uma que eclodiu há cerca de um mês, a que acresce um quadro de taxas de inflação elevadas, traduz-se num clima geral de incerteza. Qualquer startup já tem incerteza que chegue sem precisar desta outra, global, que não controla, nem influencia. A soma das duas tornou o último ano particularmente duro no acesso a dinheiro disponível dos investidores.
A escassez de recursos afeta toda a cadeia, mas acaba por ser mais dramática nas startups-sanduiche, as que já não estão no arranque à procura do primeiro investimento, nem estão com a maturidade das mais robustas com negócio firmado. São empresas que já levantaram cinco ou dez milhões de euros e que precisariam de conseguido outro tanto de investimento este ano – e não houve dinheiro para isso. O que implicou tomar decisões difíceis – a mais difícil para quase todas foi ter de reduzir equipas. Uma decisão acessória foi cortar em custos como a ida a eventos como a Web Summit.
A Web Summit é fundamentalmente um evento para juntar startups a investidores. É por isso que se tornou num grande negócio.
Isto significa que – mesmo sem o tweet que levou à demissão de Paddy Cosgrave, mesmo sem Google, Amazon ou IBM presentes – havia já um conjunto de startups que muito provavelmente não viriam.
A estas somam-se as que vinham apoiadas pelas Big Tech que desistiram em cima da hora e o destino acabou por ser o mesmo. A maioria cancelou a vinda, outras tentaram apoios alternativos para poder vir a Lisboa – e algumas conseguiram.
Olhemos agora para o lado dos investidores, foram 900 a estar presentes em Lisboa. Meios internacionais como a Sifted escreveram que, dos contactos que mantiveram, a perceção com que ficaram foi a de que – apesar dos números oficiais sublinharem que esta edição bateu recordes de participação – as pessoas presentes “não são pessoas muito importantes”. Acrescentam que ao pesquisar na app por VCs como Index Ventures, Seedcamp, Dawn Capital ou Atomico nada aparece. A explicação que encontram é o alinhamento com as Big Tech, ou seja, uma razão política, mas, à semelhança das startups, talvez valha a pena pensar na componente económica também. Para quem não está a pensar investir ou já tem onde para onde direcionar o investimento – mais escasso no natureza nesta altura –, fará sentido ir a um evento com esse propósito?
Pode, sem dúvida, ter contribuído o alinhamento político e a menor atratividade do programa. No palco, onde já passaram nomes como Al Gore, Stephen Hawking, Garry Kasparov, não havia este ano um nome imperdível. Nem Marcelo Rebelo de Sousa fez o habitualmente entusiástico encerramento, uma vez que estava na Guiné-Bissau, juntamente com António Costa.
Mas falar das conferências e do cartaz de nomes é ignorar a essência da Web Summit, mesmo que para a população em geral este seja apenas mais um festival com hordas de miúdos estrangeiros que têm em comum serem geeks e quererem ser o próximo Mark Zuckerberg (uma ambição muito 2010, já agora).
Pode ser esse o embrulho, mas não é esse o produto.
A Web Summit é fundamentalmente um evento para juntar startups a investidores. É por isso que se tornou num grande negócio: porque para centenas (milhares, na verdade, este ano foram 2600 startups) de empresas que atuam na área tecnológica, com produtos que ainda não têm mercado, mas podem ter futuro, a possibilidade de durante três dias poderem encontrar investidores com quem marcar reuniões vale o dinheiro investido no bilhete, na viagem e na estadia. Não são só investidores, mas também potenciais clientes, parceiros, além da exposição de media. Nada disto é coisa pouca.
O fundador de uma das startups presente nesta edição contou-me que foi convidado por Paddy Cosgrave para uma das primeiras edições, ainda em Dublin, e que na altura recusou. “Dois mil euros para ir a um evento? Estás louco”, recorda-se de ter dito. Nesse mesmo ano, uma série de startups que compraram esse mesmo bilhete entraram de mãos a abanar e saíram, na sua expressão, “com investimentos chorudos”. “Acho que nesse ano até o Elon Musk andava por lá”.
Foi assim que a Web Summit se tornou num dos maiores eventos de negócio mundiais. É de negócios que se trata.
E, nesse âmbito, mesmo com menos investidores, mesmo sem algumas das Big Tech, as startups que vieram – ou as comitivas de países, como por exemplo o caso de Cabo Verde, que com quase 100 pessoas foi a maior comitiva africana – não deram o seu tempo por mal empregue. Falei pessoalmente com várias e o The Next Big Idea, que esteve durante os três dias com uma emissão em direto, ouviu várias dezenas de pessoas entre fundadores de startups, investidores – incluindo a equipa do Fundo Europeu de Investimento, o fundo dos fundos que serve de farol a muitos dos investimentos na Europa e a responsáveis por políticas públicas.
Há sempre quem goste de teorias da conspiração, mas é pouco provável que pessoas tão diferentes e que não se conhecem entre si na maior parte dos casos tenham garantido que valeu a pena vir a Lisboa. A maior parte passou os dias em reuniões e a tentar guardar fôlego para os eventos laterais, apresentações ou festas à noite. A tão falada Night Summit também se normalizou como parte do evento – é mais um momento para conhecer pessoas com a particularidade de, por vezes, em conversas de copo na mão ser mais fácil falar do que se faz e obter empatia de quem ouve.
Então está tudo bem com a Web Summit?
Esse é um prognóstico como os do futebol, mas não é porque o evento não faça sentido e, já agora, que Lisboa não ganhe em o ter na cidade (podemos discutir os termos, não o valor para o posicionamento no mapa global de inovação). Não está ainda claro qual o impacto futuro da saída de Paddy Cosgrave, mas, à margem dessa circunstância, existia já uma necessidade de repensar algumas das dinâmicas do evento – nomeadamente na componente de “espetáculo”. Esta era já uma Web Summit bastante insossa ainda antes da crise do tweet, o que pode também querer dizer que as atenções de Paddy Cosgrave, ainda antes de sair, já estavam noutras geografias – como Brasil e Qatar, onde o evento se vai realizar. Tanto o Brasil como Dubai, Qatar e Arábia Saudita tiveram uma presença robusta em Lisboa, e o mesmo se pode dizer de delegações europeias, como a da Alemanha.
Se o evento vale pelo negócio, a perceção vende-se pelo espetáculo, seja em Lisboa, no Rio ou em Doha. Uma e outra dependerão da capacidade e da estratégia da empresa que um dia percebeu que havia valor em juntar durante três ou quatro dias o mundo da tecnologia e o mundo financeiro num mesmo lugar.