Voltar | Startup Life

“Há dinheiro e há bons projetos, mas normalmente as pessoas que se queixam não são as que têm bons projetos”

por | 16 de Março, 2021

"Há dinheiro e há bons projetos, mas normalmente as pessoas que se queixam não são as que têm bons projetos"

Ri-se quando lhe perguntamos como foi ficar rica antes dos 30 e prefere citar uma frase do pai: “uma rica pessoa continua a ser uma rica pessoa”.

Cristina Fonseca não tem, de todo, um percurso comum. Fundou a Talkdesk em 2011, em plena crise económica e no ano em que acabava de concluir o curso no Instituto Superior Técnico. Dez anos depois, a Talkdesk é um dos unicórnios portugueses, avaliada em mais de três mil milhões de dólares, e Cristina é atualmente sócia da Indico Partners – ou seja, está do outro lado da mesa, a avaliar projetos de startups e de pessoas que, como ela, acreditam que têm uma ideia e um produto ou serviço que pode mudar, pelo menos em parte, o mundo.

E, em dez anos, o mundo é diferente dos tempos em que Cristina se lembra de ouvir as notícias das tecnológicas que nasciam, sobretudo, do outro lado do Atlântico, e em que todos achavam que podiam “ser o Mark Zuckerberg do Facebook”. Foi a experiência no mercado americano que mudou a natureza da Talkdesk e dos seus fundadores, não apenas pelo “empurrão” que levaram ao participar no acelerador da 500 Startups, mas também pela endurance que a experiência lhes deu. Das coisas mais práticas, como perceber que não basta a tecnologia, é preciso vendas, às coisas mais coloquiais, como perder o medo de pegar no telefone e pedir ajuda a quem a possa dar.

Na década que temos pela frente, Cristina Fonseca antecipa desafios diferentes. Por um lado, vislumbra um cenário em que mais startups vão falhar e com histórias potencialmente “mais dramáticas”. Faz parte do crescimento, sublinha, não é nenhum sinal vermelho. Por outro, vê pouco talento tecnológico disponível para as PMEs e para o desafio da transição digital, fruto da instalação em Portugal de multinacionais que recrutam e pagam salários mais elevados – o que também faz com que algumas pessoas estejam menos disponíveis para criar a sua própria startup.

Pessoalmente, tem como um dos desafios trazer mais mulheres para o mundo da tecnologia e das empresas. Um trabalho que sabe ser de longa duração e em que a mudança tem de começar pela educação. Diz que não tem nenhum role model em especial, mas pode bem tornar-se um para futuras engenheiras e tecnólogas e o facto de se ter tornado a primeira mulher a integrar a lista dos líderes com menos de 40 anos do World Economic Forum pode ajudar a que assim seja.

Como é que foi teres ficado rica antes dos 30?

Certamente fiquei muito rica em experiência, e como diz o meu pai “uma rica pessoa continua a ser uma rica pessoa” – é o que eu acho. Basicamente quando as coisas aconteceram foi um misto de termos tido a oportunidade, mas também de estarmos preparados para ela. Quando saímos do Instituto Superior Técnico, eu e o Tiago decidimos não aceitar nenhuma das ofertas de emprego tradicionais e ir explorar e criar uma empresa. Na altura, isso não era de todo popular.

Em que ano é que acabaste o curso?

Em 2011, portanto, em Portugal não era nada popular. Mas nos Estados Unidos este ecossistema das startups já era muito comum, havia uma série de aceleradores, havia um ecossistema muito dinâmico que acompanhávamos à distância. Na verdade, estávamos a tentar preparar-nos para estar à altura daquele ecossistema, seguíamos os podcasts, líamos os artigos todos e fizemos umas experiências de criar negócios online e de os lançar na internet. Achámos que podíamos ser o Mark Zuckerberg do Facebook.

Achavam todos naquela altura, não era?

Sim.

Conseguirmos com o nosso talento e as nossas capacidades de engenharia criar um produto global e ter a internet como o principal canal de escalabilidade e de vendas desse produto

Quem estava no meio tecnológico achava que esse era o sonho.

Claro, e eu acho que as pessoas quando sonham com um percurso desse género acabam por ter uma inspiração e acabam sempre por acreditar que conseguem mudar o mundo, que conseguem desenvolver uma ideia. Isto abriu uma série de oportunidades ao mercado português e ao mercado europeu, porque, de repente, o que é que nos distancia de conseguirmos fazer uma empresa tecnológica de sucesso? Hoje em dia a tecnologia democratizou; de repente eu consigo pôr uma ideia na internet, o meu canal de distribuição é a internet, obviamente que há nuances, mas regra geral foi um bocadinho o sonho. Nós conseguirmos com o nosso talento e as nossas capacidades de engenharia criar um produto global e ter a internet como o principal canal de escalabilidade e de vendas desse produto.

Que idade é que tu tinhas em 2011?

Tinha 22/23 anos.

Como é que eu de repente pegava nas minhas mãozinhas, programava algumas coisas, punha aquilo na internet e saía um produto

Estávamos no início de uma crise económica profunda, que se prolongou pelos anos seguintes, não era a coisa mais óbvia pensar que “saio do Técnico, acabei o meu curso e vou montar a minha empresa”. Como é que esse percurso acontece?

Eu própria não sei muito bem. Ou seja, há dois ou três episódios e factos da minha vida que se calhar me levaram por esse caminho. O primeiro é que na minha família as pessoas são independentes, empreendedoras, o meu pai teve uma empresa muitos anos e, portanto, se calhar o bichinho estava lá e não tinha medo de arriscar e resolver problemas, mesmo que eu não estivesse confortável com esses mesmos problemas. Depois o facto de termos alguma inspiração a vir dos Estados Unidos – e esta questão das empresas tecnológicas era fascinante. Como é que eu de repente pegava nas minhas mãozinhas, programava algumas coisas, punha aquilo na internet e saía um produto! E isso estava relativamente próximo dos produtos tecnológicos que estavam a ganhar destaque no mercado e, portanto, tentámos replicar esse mecanismo. Olhávamos para o Basecamp e pensávamos: construíram uma empresa bastante famosa, fizeram os primeiros gestores de tarefas e gestores de projetos, software de gestão de projetos online, e tecnicamente fazer uma coisa daquelas era relativamente simples para nós. Acho que fomos um bocadinho atraídos pelo desafio de pegar no nosso conhecimento e pensar que isto era possível.

O que nos fez dar esse salto foi ir para os Estados Unidos participar num acelerador de empresas (…) era preciso vendas, era preciso marketing, era preciso investimento, que era uma coisa que em Portugal não existia

O desafio na realidade não está tanto em conseguir ter o produto, está em conseguir que haja clientes para esse produto e que esse produto, entre outros parecidos, ganhe destaque, e isso vocês conseguiram fazer com a Talkdesk. Como é que se dá esse salto de “isto eu consigo fazer” para uma empresa como a Talkdesk que é hoje uma das tecnológicas mais conhecidas em Portugal, e fora de Portugal tem já um currículo significativo?

É uma ótima pergunta, até porque combina a expectativa com a realidade. A nossa expectativa era que colocar um produto na internet fosse suficiente para começar o caminho de sucesso, e depois percebemos que isso não era assim. O que nos fez dar esse salto foi ir para os Estados Unidos participar num acelerador de empresas e aí percebemos que estávamos muito longe de estar nesse caminho. Era preciso vendas, era preciso marketing, era preciso investimento, que era uma coisa que em Portugal não existia. Era preciso estarmos com o mindset correto, era preciso acordarmos todos os dias e não estarmos a pensar como é que se constrói uma empresa pequenina, uma empresa familiar, uma PME à escala portuguesa, mas uma empresa à escala de uma Google. Isso para nós se calhar foi a mudança mais radical e que nos custou mais, porque de repente aterrámos nos Estados Unidos, num ambiente em que toda a gente estava a tentar fazer a próxima Google e o próximo Facebook e o nosso próprio computador estava programado para fazer as coisas cuidadosamente, um passo de cada vez – não posso aumentar muito os custos porque as coisas podem ficar fora de controlo. Nós não tínhamos à nossa volta exemplos de empresas que tivessem feito este caminho de “ok eu encontrei um problema grande, que vale a pena ser resolvido em escala, cuja oportunidade de negócio é incrível”, portanto, nunca pensávamos assim. Por isso, eu vou captar investimento de capitais de risco para fazer este caminho muito rápido e ganhar este mercado.

Isso muda lá, quando estão nos Estados Unidos?

O que nos fez perceber todas essas coisas e passar do “ok nós somos técnicos e sabemos fazer bons programas de computador” para “ok nós conseguimos ter um negócio de sucesso, encontrámos aqui um produto que faz sentido e que podemos escalar rápido” foi o acelerador nos Estados Unidos, que era a 500 Startups. Passámos quatro ou cinco ou seis meses, já nem sei muito bem naquele programa intensivo, em que em cada semana cobria uma área de negócio diferente, tínhamos mentores diferentes, e obviamente isso também nos expôs a uma rede incrível de empreendedores, de investidores. Uma outra coisa foi fazer uma ronda de investimento, e começar a ter investidores que também nos ajudavam. Os meus investidores de hoje em dia são investidores em empresas tecnológicas de renome em que sempre que tive um problema e quis falar com um founder de qualquer uma delas foi facílimo. São estas conversas que fazem crescer e é esta inspiração. Tens de te rodear de pessoas que já fizeram um bocadinho aquilo que tu aspiras, pessoas que já viram aquele caminho a acontecer e nós de Portugal éramos uns aspirantes a empreendedores. Lá foi muito mais fácil estarmos envolvidos nesta máquina.

Desde o vosso regresso até à Talkdesk se ter tornado uma empresa que é um unicórnio, quanto tempo é que passou? Foi rápido, foi normal, demorou mais que o que esperavas?

Esta guerra toda dos unicórnios é um bocadinho injusta, porque isto tem a ver com os mercados financeiros, com o facto de haver dinheiro disponível para venture capital . Isto é um fenómeno relativamente recente e, portanto, se é rápido ou lento, isso depende, [Na Talkdesk] somos ainda uma empresa privada, quando formos uma empresa pública, aí podemos comparar-nos com os benchmarks que existem e com outras empresas do mesmo tipo, mas a verdade é que ainda somos uma empresa privada. A empresa tem hoje em dia 800 ou 900 pessoas, portanto, é incrível.

Mas falávamos do regresso a Portugal …

Queria aproveitar para voltar atrás, porque um dos comentários foi o nosso regresso a Portugal e essa foi outra das coisas em que não seguimos a regra. Nós nunca regressámos a Portugal, ou seja, eu regressei a Portugal porque captámos uma ronda de investimento, precisávamos de desenvolver o produto mais rápido e o que precisávamos era talento de engenharia – obviamente que em São Francisco competir por esse talento era uma luta injusta, não tínhamos rede lá e era muito mais caro, não foi sequer uma opção. Assim, voltei para Portugal para montar a equipa e as operações, abrir o escritório, essas coisas todas que até ali não existiam, e o Tiago ficou baseado lá para manter esta relação com clientes, com investidores. E sem pensar muito, porque foi o movimento natural, acabámos por ter uma presença forte nos dois lados.

Quando tu voltas para montar essa equipa tinha passado o quê, um ano desde que tinham começado?

Um bocadinho menos, seis meses.

Só resolves um problema de cada vez. Ou seja, acordava e pensava “qual é o problema que tenho de resolver hoje?”

Tu continuavas a ter 22 ou 23 anos. Como é que era montar uma equipa com esse desafio todo para uma miúda que na realidade acabou de sair da faculdade?

Só resolves um problema de cada vez. Ou seja, acordava e pensava “qual é o problema que tenho de resolver hoje?” – precisava de contratar, precisava de encontrar espaço, precisava de lidar com uma série de coisas, mas acho que isso não foi o mais difícil.

O que é que foi o mais difícil?

Foi difícil encontrar pessoas boas. Houve umas pessoas no início que contratámos que não foram as pessoas certas e, portanto, acabaram por sair muito cedo. Mas também tivemos a clareza de corrigir esses erros rápido o suficiente, não ficámos condenados a erros que fizemos no início.

Pediste alguma ajuda nesse processo?

Tu tens sempre ajuda, não sabes ligas ao amigo, ao investidor, ligas a alguém que tu achas que pode ajudar, recorres um bocadinho à tua rede. E se há coisa que eu aprendi nos Estados Unidos é pegar no telefone e chatear pessoas.

E se há coisa que eu aprendi nos Estados Unidos é pegar no telefone e chatear pessoas

É uma coisa que em Portugal é ainda difícil, pegar no telefone e chatear pessoas.

Isso para mim não era natural.

Porque é que achas que acontece?

Porque, se calhar, estamos habituados a ser um bocadinho mais comedidos na abordagem, a seguir mais as regras. Não sei, mas senti que estava programada para agir dessa forma e era desconfortável para mim pegar no telefone.

E nos Estados Unidos sentiste exatamente o contrário?

Exato, nos Estados Unidos é uma luta. Esta questão das startups é um jogo de sobrevivência. Eu tenho que conseguir capital – se tenho uma ideia e acho que a minha ideia vai ganhar este mercado e vai ser a ultima coca-cola do deserto, preciso de dinheiro para executar o meu plano o mais rápido possível. Tenho de conseguir vender a minha ideia aos investidores. Conseguir chamar a atenção de um investidor e convencer um investidor a dar-me meio milhão, milhão, dois milhões de euros, o que for, é melhor que seja uma competição. É duro, uma pessoa tem de estar preparada, tem de acreditar que é melhor que um conjunto de pessoas que possa estar a trabalhar no mesmo problema, e isso nós aprendemos lá. Eram 32 empresas, havia uma quantidade de investidores que estava interessado. A partir do momento que fazemos um acelerador nos Estados Unidos fica-se com um carimbo de qualidade, no radar e há uma série de investidores que de repente estão interessados em perceber o teu negócio. Mas não vão investir nas empresas todas, portanto, sim é uma luta, é uma competição – então tens de ir à luta. Como é que vais à luta? Tentas destacar-te de alguma maneira. Em Portugal, não havia tanto esta coisa, sobretudo um estudante da faculdade que era treinado para ir trabalhar para as multinacionais, para as consultoras. Eu lembro-me a cinco ou seis meses de acabar o curso que estas consultoras e empresas faziam fila e davam ofertas a quase toda a gente e as ofertas eram iguaizinhas – uma pessoa não tem nunca que ser proativo, basta ser reativo, está ali. Nos Estados Unidos pensam ao contrário, que é “vou pensar por mim e depois vou executar o meu plano”, e nós fomos obrigados a fazer esse shift.

O que provocou a mudança foi haver uma série de casos de sucesso de empresas, a Talkdesk, a OutSystems, a Feedzai, a Unbabel,e outras. Estas empresas acabaram por inspirar gerações mais novas

Falaste de como era era sair da faculdade há quase 10 anos. O que é que mudou, entretanto?

O que provocou a mudança foi haver uma série de casos de sucesso de empresas, a Talkdesk, a OutSystems, a Feedzai, a Unbabel,e outras. Estas empresas acabaram por inspirar gerações mais novas. Depois o facto de nos últimos anos ter sido canalizado investimento significativo para o ecossistema das startups, de repente Web Summit vem para Portugal, começa a haver alguns investimentos, a questões dos aceleradores … Na altura havia três aceleradores ou quatro que valiam a pena, hoje em dia há aceleradores em todo o lado e, portanto, houve uma democratização destas ferramentas de apoio a “vamos começar uma startup e ser empreendedores”. Já para não falar da quantidade de aulas online, faculdades americanas, de todo o conhecimento que possamos imaginar estar disponível online. Se eu quiser criar uma empresa consigo agregar as peças e perceber como é que isto se faz.

Não houve também uma mudança na mentalidade e até no estilo de vida? Hoje em dia pensa-se de outra maneira, há muitos jovens que são empresários, que parecem ter uma vida que não é nada aborrecida. Há quase uma proximidade de rockstar, de ter um estatuto de “que vida tão boa, ganhar tanto dinheiro”. Qual é a diferença entre essa percepção e a realidade?

A percepção e a realidade são diferentes. Reconheço que há muita gente atraída por essa coolness de se criar uma empresa, mas honestamente criar uma empresa é duríssimo, continua a ser, com a agravante que depois o mundo espera que tu tenhas essa expressão cool de que tudo está maravilhoso. Normalmente o que acontece é que tens de fazer de conta que está tudo maravilhoso e tens dinheiro no banco para pagar as contas durante 6 meses. Se calhar estás a falhar o plano que tinhas contigo próprio para a empresa, altamente problemático e stressante, não tens os recursos todos que gostarias de ter, dormes mal porque estás a tentar fechar clientes no outro lado do planeta, viajas a toda a hora porque tens de dar a cara pelos teus clientes, tens de tentar reunir com investidores, tens de ir àquela conferência falar porque o teu marketing depende disso. E de repente a tua vida é um caos, mas claro as pessoas acham que és um startup founder e que isso é ser rockstar. Em Portugal ainda não vimos grandes falhanços de startups, que é uma coisa que acontece e que o nosso ecossistema ainda não está muito habituado, só vemos histórias de sucesso associadas ao empreendedorismo.

Em Portugal ainda não vimos grandes falhanços de startups, que é uma coisa que acontece e que o nosso ecossistema ainda não está muito habituado, só vemos histórias de sucesso associadas ao empreendedorismo

Ou seja, andamos pouco à volta dessa vida real?

Claro, porque as pessoas gostam de histórias positivas e as pessoas inspiram-se com histórias positivas.

Já vimos [na Indico Partners] mais de 1300 empresas que avaliámos e há muita gente que nem sequer tem noção do que é necessário para criar uma startup tecnológica

Hoje em dia muitas das empresas que são apresentadas como startups não correspondem em nada àquilo que é a definição do que é uma startup. Indica que a mudança no nome significa alguma coisa para as pessoas, ou seja, acham mais moderno ter uma startup?

Chamam uma startup a tudo. É verdade e isso vem um bocadinho dos Estados Unidos. Acho que tem duas razões de ser: uma é como tem havido muito dinheiro disponível no ecossistema de startups, sobretudo nos Estados Unidos, houve uma tentativa de posicionar empresas como uma startup tecnológica para conseguir captar investimento dentro dos moldes de uma startup tecnológica. Veja-se por exemplo o caso do WeWork, que é uma empresa de real estate [imobiliário]. Outra que foi para bolsa, o Casper, basicamente o que fazem é vender colchões online e posicionaram-se como uma startup tecnológica. Obviamente que para um investidor o retorno expectável de uma empresa que vende colchões e o retorno expectável de uma empresa que vende software é muito diferente, mas se houve investidores que apostaram naquela empresa tendo em conta os pressupostos de que seria uma empresa tecnológica, acaba por ter um efeito em cascata para depois outras geografias. De repente inventei uma mercearia gourmet e acho que pode ser uma startup, por fazer pedidos numa mobile app aquilo passou a ser uma empresa tecnológica. Primeiro, hoje em dia não acho que haja empresas que não usem tecnologia e, desse ponto de vista, se calhar conseguimos considerar qualquer empresa uma empresa tecnológica. Mas a verdade é que depois as pessoas têm, elas próprias, expectativas erradas. Já vimos [na Indico Partners] nos últimos dois anos mais de 1300 empresas que avaliámos, umas mais a sério que outras, no nosso processo de investimento, e há muita gente que nem sequer tem noção do que é necessário para criar uma startup tecnológica. Exatamente por isto ou porque achas que tens uma coisa que é tech e é escalável e não é, ou porque tens algo que é competitivo no mercado português, mas depois não é competitivo em mais lado nenhum. Se tiver identificado um problema, que percebo que mais pessoas têm aquele problema, normalmente, há várias soluções possíveis; se acho que tenho a melhor solução, então tenho de expor essa solução ao mercado, tenho de captar feedback do mercado e perceber se as pessoas estão dispostas a pagar e quanto é que estão dispostas a pagar pela minha solução. Chegam-nos pessoas com powerpoints todos os dias que dizem “eu vou mudar o mundo, escalável, tech, espetacular”, mas a quantas pessoas é que já vendeste isso? A quantas pessoas é que já tentaste vender isso? Porque esse vai ser o nosso indicador de perceber se aquela equipa consegue executar aquilo a que se propõe, nem que seja dois ou três clientes, ter a coragem de ser chato, de pegar no telefone, de ser criativo a encontrar soluções para os problemas.

Achas que se procura um investidor como se procurava um patrão? Ou seja, alguém que permita pagar as contas e que me dê as condições para fazer aquilo que sei fazer …

Sim, isso claramente acontece muito e esse é o mindset errado. Uma pessoa que esteja à espera de um investidor para pagar as contas e para acreditar em mim. É outra coisa, o investidor não tem de acreditar, isto não é um jogo de eu acreditar. Isto é um jogo de “ok, tu identificaste um problema que é grande o suficiente e cuja solução passa por usar tecnologia e pode ser rapidamente escalável, provaste que essa solução é válida e eu vou dar-te dinheiro para tu acelerares a execução”. Este é o modelo tradicional de VC, não é um modelo de “olhe, tenho aqui uma ideia espetacular, e se tu acreditares em mim, eu vou fazer isto”.

Há 20 ou 30 anos eram os sócios, hoje em dia tudo é um investidor

As coisas tornam-se muitas vezes emocionais. Um investidor não mete dinheiro numa empresa à espera que simplesmente pague os ordenados e se consiga aguentar, espera que de facto tenha um retorno acima disso, porque está a decidir pôr o dinheiro ali em vez de pôr noutro sítio, o que faz sentido, mas na prática isso gera alguns ressentimentos.

Esse é um ótimo ponto, até porque há vários tipos de investidores e nós também pomos todos no mesmo saco. Posso ter investidores, vamos chamar-lhe tradicionais, que dizem “olha, tu tens um negócio incrível, percebo que vais gerar algum retorno, o risco é muito menor do que eu estar a investir numa startup, se calhar tenho conhecimento na tua área de negócio ou tenho contatos que te podem ajudar, eu vou investir na tua empresa; obviamente que espero retorno um dia através de que mecanismos forem”, – isto é um tipo de investimento. Há 20 ou 30 anos eram os sócios, hoje em dia tudo é um investidor. Depois temos as capitais de risco, os VC, que é o que nós fazemos. Quando invisto numa startup, acredito que vai compensar o falhanço potencial das outras todas em que já investi, portanto, essa startup tem de ser o unicórnio do meu portfólio, tem de valorizar muito rapidamente e em 10 anos tem de ser o próximo Facebook de qualquer seja a área em que estão a atuar.

Uma curtíssima minoria estará aí.

Porque há tantos fatores. É o mercado, a competição. Vamos imaginar que outro competidor naquela área consegue levantar mais dinheiro e andar mais rápido, vamos imaginar que de repente o fundador não conseguiu, o timing do mercado não estava lá, não conseguiu descobrir os canais de distribuição certos, … há tantas variáveis, isto é um negócio de alto risco. Mas como assim é, tenho de conseguir em cada uma que investir ter o potencial para ser este caso de sucesso gigante. Portanto, se uma startup espera ter um negócio pequenino, sustentável, mais ou menos controlado com muito menos risco, não tem mal nenhum, mas não somos os investidores certos, e às vezes há essa expectativa errada.

A minha saída da Talkdesk obviamente que foi planeada com algum cuidado, mas numa altura em que estava absolutamente desgastada e precisava claramente de uma pausa

Entretanto saltámos para uma mudança importante na tua vida, que foi o facto de teres saído operacionalmente da Talkdesk e teres decidido depois de um período de pausa iniciar um percurso como investidora. Porque é que decidiste sair?

Na minha vida planeei pouco, ou seja, os movimentos de transição foram genericamente pouco planeados. A minha saída da Talkdesk obviamente que foi planeada com algum cuidado, mas numa altura em que estava absolutamente desgastada e, portanto, precisava claramente de uma pausa. Quando uma pessoa faz algo que funciona e olha para a frente e vê que vai ter aquela vida durante a próxima década, era completamente impossível … Por isso, tive de me afastar um bocadinho para conseguir rebalancear-me a mim própria e isto foi um efeito secundário de eu ter começado uma startup com 23 anos, ter percebido que a oportunidade era incrível e, portanto, durante aquele período não fiz mais nada a não ser trabalhar.

Quantos anos é que isso durou?

7 anos, talvez 6.

Estavas quase a fazer 30 e decidiste sair. O que é que foste fazer?

Uma das coisas que eu queria fazer e não tinha tempo era a Singularity University. Fui fazer um programa de pensar um bocadinho no futuro, consegui-me distanciar do dia-a-dia e pensar como é que o mundo vai evoluir nos dez anos seguintes. Fiz isso depois de uma viagem. Diverti-me imenso e fiz um exercício pessoal de perceber o que é que poderia ser o meu próximo passo. Não foi muito óbvio, mas a verdade é que eu comecei a passar mais tempo com empreendedores portugueses que queriam escalar as empresas lá para fora, que eram altamente talentosos, e que tinham esta ambição de construir um negócio de sucesso com alguma ligação a Portugal ou não. Foi nessa sequência que surgiu o VC. Tive convites para ir para Londres e para ser investidora em Londres, mas eu não sentia genuinamente que isso fosse ter impacto em grande escala e que fosse adicionar muito ao ecossistema onde me encontrava.

Tipicamente investimos de 250/300 mil euros até 5 milhões de euros, e ajudamos aquela empresa durante os 18 meses seguintes. “Ajudamos” é diferente de “babysitting”

Porque é que tu achas que várias pessoas olharam para ti e pensaram “esta miúda se calhar faz sentido vir trabalhar para o lado de quem está a avaliar um investimento”?

Hoje em dia o mundo do investimento também é um bocadinho competitivo e eu que os próprios fundadores se reveem muito em ter um investidor que já passou por aquilo que eles estão a passar. Aliás, a razão pela qual eu acho que a equipa da Indico é incrível é porque temos os três experiências muito diferentes, mais de gestão, estratégia, mais financeiro, mais legal, mais operacional. Eu percebo muito bem os desafios que as startups estão a passar e acho que por isso tenho uma ótima relação com os nossos fundadores. A malta vem ter connosco e pede-nos ajuda, percebe que temos essa experiência. Se calhar vale a pena explicar um bocadinho o que é que é o nosso negócio: quando uma empresa vem falar comigo, a empresa tem de perceber as regras do meu jogo: o meu objetivo é criar casos de sucesso de empresas tecnológicas. Existe uma empresa num estágio inicial e o objetivo é que chegue a líder daquela categoria. Tipicamente investimos de 250/300 mil euros até 5 milhões de euros, e ajudamos aquela empresa durante os 18 meses seguintes. “Ajudamos” é diferente de “babysitting”, que às vezes também há essa expectativa. Ajudamos a empresa nos 18 meses seguintes a preparar-se para ter tudo no sítio de forma a conseguir levantar uma ronda de investimento a seguir, que pode ser de 3 a 5 milhões; depende se investir 500 mil euros ou um milhão, a ronda seguinte se calhar vai ser de 3 a 5 milhões e a etapa seguinte será até aos 25/30. A receita é mais ou menos esta, mas depende. O que é que eu preciso de fazer durante estes 18 meses? Trabalhar com os empreendedores, dar-lhes a direção que devem seguir e otimizar para fazer uma série de testes em mercados competitivos, ter a casa arrumada, ter um reporting mínimo, contratar pessoas com valências que possam faltar, tudo isso. Depois preciso de ter uma rede de investidores internacionais que sejam muito melhores que eu a levar a empresa ao nível seguinte e sejam pessoas a quem eu possa ligar, porque é isto que nós fazemos, e dizer “olha tenho uma startup incrível que está pronta para aquilo que tu procuras”. Portanto, os meus clientes são estes investidores internacionais e muitas das vezes quando as startups vêm ter comigo não têm esta noção. Ou seja, tenho sucesso quando consigo que a empresa esteja preparada para levantar uma ronda subsequente de capital e com esse capital continuar a escalar para a próxima fase.

No fundo vocês juntam dois pontos, as startups que vão ter convosco e uma rede de investidores a quem têm de convencer, depois de estarem convencidos que é um bom investimento.

Sim, depois de estarmos convencidos e depois de estarmos um ano e meio a trabalharmos com as empresas. É por isso que precisamos de equipas que sejam brilhantes a executar, porque nesse time frame podem acontecer duas coisas: ou a empresa ficou sem dinheiro e não conseguiu provar aquilo que queria provar e depois o sonho de toda a gente é destruído, não é só o meu.

Já te aconteceu muitas vezes?

Sim, isso é normal.

Estás mais resistente a isso? Pergunto porque é normal quando apoiamos um projeto, seja nosso ou seja próximo, que haja um investimento emocional. Como é que se fica mais rijo para aguentar esses embates?

Temos que ser realistas. O nosso nível de investimento e o modelo de investimento de todas as empresas de capital de risco pressupõem isso, faz parte do jogo. É um jogo binário, há empreendedores que querem ter um negócio, podem ter um negócio de 5 ou 6 pessoas que faz dinheiro, que é sustentável, é um negócio válido, mas, no nosso jogo, isto é binário, ou funciona e consegues criar uma grande empresa ou então vais crashar a alta velocidade e não vai ser bonito.

Já tiveste que dizer isso a alguém – que não vai dar?

Honestamente, eu tento nas conversas com potenciais investimentos ser o mais realista possível e digo a muita gente. Quando tens dois fundadores a trabalhar arduamente de dia e de noite, a dedicar tudo o que têm a um projeto e não achas que eles vão a lado nenhum, eu sinto a responsabilidade de lhes dizer isso – “ok, a energia que vocês têm é rara, mas então vão aplica-la nalguma coisa, sejam realistas convosco próprios, façam umas continhas, e percebam o que é que seria necessário para isto ser um negócio, que é uma coisa completamente irrealista do meu ponto de vista”.

Nas sociedades de investimento existe uma coisa que é o anti-portfólio, as oportunidades que tu perdeste, algumas delas até tinhas oportunidade de ter feito

E o contrário? Já te aconteceu o tal sentimento do fear of missing out, de “se calhar está a escapar-me alguma coisa, se calhar é um grande negócio e eu estou a deixá-lo escapar entre os dedos”?

Claro que sim, isso acontece e é normal que aconteça. Nas sociedades de investimento existe uma coisa que é o anti-portfólio, as oportunidades que tu perdeste, algumas delas até tinhas oportunidade de ter feito, mas fizeste a decisão errada de investimento. E isso é normal, também tens de viver bem com isso.

Comparando com o cidadão comum, é um bocadinho como não ter metido o euromilhões?

Não, porque em VC as probabilidades são pequenas, mas no euromilhões as probabilidades, eu já fiz essa conta, são zero. Portanto, não é bem a mesma coisa, mas o mecanismo é semelhante.

Emocionalmente pode ser parecido?

Não, acho que não pode.

Nunca te aconteceu teres uma coisa do género “eu podia ter sido uma das fundadoras desta empresa que agora vale triliões, mas não, não percebi, deixei passa a oportunidade e, portanto, não vai voltar a acontecer, esta não passa duas vezes”?

Não, mas acho que isso acontece ou tem a probabilidade de acontecer. Há muitas empresas que chegam a uma fase de ou tens uma dúvida na equipa ou tens uma dúvida de produto ou tens uma dúvida de mercado ou então não fizeste o trabalho de casa. Porque obviamente temos de fazer muito trabalho de casa, e tivemos ali uma ou duas red flags e não estamos ainda convencidos. Depois há outra coisa que é que a nossa pool de dinheiro não é infinita, portanto tenho de fazer escolhas, não posso de repente investir em todas as startups que acho que são interessantes e que vão ser casos de sucesso. Também há essa gestão.

Uma das coisas que aborrece vários projetos de startups é ouvirem muitas vezes os investidores dizer que há dinheiro, não há é bons projetos.

Eu não percebo porque é que isso aborrece as pessoas.

Há dinheiro e há bons projetos, mas normalmente as pessoas que se queixam não são as que têm bons projetos

Mas é verdade que há dinheiro e não há bons projetos em Portugal?

Há dinheiro e há bons projetos, mas normalmente as pessoas que se queixam não são as que têm bons projetos, porque é o mais fácil.

Portanto, para um bom projeto há dinheiro?

Para um bom projeto há dinheiro, honestamente, e se não houver aqui há em Berlim, Londres ou nos Estados Unidos, Depois há outra coisa, que é que os primeiros 50 ou 100 mil euros são difíceis de encontrar, nos Estados Unidos, também relacionado com o facto de as pessoas ganharem melhor. As pessoas conseguem estar numa startup a trabalhar um, dois, três anos conseguem poupar para viver seis ou sete meses ou um ano sem salário; em Portugal isso é um bocadinho irrealista. Se não tiveres essa disponibilidade financeira, tens os “family and friends”, alguém que diz “olha sim eu acredito em ti” ou tens o teu ex-chefe ou tens o teu amigo que é fundador da startup e pode investir. Tens um ecossistema me que os primeiros 50 ou 100 mil euros são relativamente mais fáceis de conseguir do que aqui, e isso é um problema.

Em equipas muito qualificadas, na área tecnológica e na área científica, 50 mil euros dão para quê? Quantos salários é que pagam e quanto tempo é que aguentam uma equipa?

Com 50 mil euros não pagas muita coisa, honestamente. Mas 50 mil euros para os fundadores que estão altamente determinados, que querem explorar o negócio, que têm uma vantagem num determinado mercado – acredito que as equipas fundadoras têm de ter as capacidades técnicas para provar o produto – 50 mil euros dá para fazer essa prova de conceito. Com 50 mil euros consigo pagar as contas, arranjar um espaço de escritório, viver no vermelho, mas consigo o suficiente para fazer essa prova de conceito.

É basicamente aquele período em que assumes que é o período do sacrifício.

É o período do sacrifício, aliás é mais que isso, mas esse é o primeiro período do sacrifício.

A partir daí o percurso normal será, se correr bem, se a prova de conceito funcionar, conseguir passar para um patamar seguinte em termos de investimento. Daquilo que conheces do mercado português, esse processo tem sido fácil para os bons projetos?

Não é, mas nunca é, mesmo no mercado norte-americano não é. Não é fácil, porque preciso de ter esta tração inicial de mercado, preciso de ter investidores e essa é outra coisa, o capital disponível em Portugal para o early stage é pouco. Por exemplo, mesmo no nosso caso vemos muitos projetos em que não podemos investir e às vezes estão numa fase um bocadinho ainda inicial e reconhecemos que não somos os investidores certos para aquela fase. Se calhar o certo seria business angels, mas o ecossistema de business angels em Portugal também é muito diferente dos Estados Unidos, não há tantos business angels como eu gostaria a investir nesse early stage. É um bocadinho o ovo e a galinha, mas os bons projetos que conseguem alguma tração no mercado e que estão a resolver um problema muito bem consegue-se. Se os fundadores não tiverem a energia e a resiliência para encontrar forma, então se calhar não é um sinal incrível; o fundador tem de ser a pessoa capaz de convencer investidores a dar dinheiro, convencer pessoas a juntarem-se à equipa, este é o papel do fundador.

Se hoje em dia for ao Instituto Superior Técnico, já tenho mais mulheres do que quando estive lá e isso é muito positivo, mas o rácio não é o mesmo

O mundo das tecnológicas, sobretudo o mundo da engenharia, é ainda bastante um mundo de homens, no entanto, em Portugal, já conseguimos identificar uma série de empresas, de startups que têm mulheres à frente, tu és um dos casos. Isto significa que também aqui se está a sentir que o mercado está finalmente a caminhar para uma igualdade ou são apenas aqueles casos, aqueles exemplos bons que gostamos de usar para dizer “afinal de contas até já há aqui uma mudança”?

O que vemos hoje em dia no panorama também é o reflexo do funil que a educação nos dá. Ou seja, se hoje em dia for ao Instituto Superior Técnico, já tenho mais mulheres do que quando estive lá e isso é muito positivo, mas o rácio não é o mesmo. É um problema que vai demorar anos a ser resolvido, muitos anos. Há uma série de incentivos e toda a gente está atenta ao problema e há um esforço muito visível de tentar contratar mais mulheres engenheiras, mas a verdade é que a pool de talento disponível é muito inferior ao caso dos homens. Isso tem a ver com o facto de as universidades não formarem o suficiente, porque se calhar durante a infância e adolescência as pessoas foram moldadas para achar que aquilo era um trabalho um bocadinho mais masculino. É um problema que se resolve nuns 20 anos.

Acreditas que em 20 anos se vai resolver?

Não acredito que em 20 anos se vai resolver, porque para se resolver em 20 anos eu já tinha de estar a ver a nossa sociedade a ser um bocadinho menos biased em relação ao papel da mulher e do homem na sociedade e isso claramente não acontece apesar dos esforços. Muito intuitivamente tratamos as meninas diferente dos meninos e enquanto esse bias não desaparecer não vamos ter igualdade depois, no mundo do trabalho nem tecnologia.

Muito intuitivamente tratamos as meninas diferente dos meninos e enquanto esse bias não desaparecer não vamos ter igualdade depois, no mundo do trabalho nem tecnologia.

Com os dados todos de rankings a mostrar que as raparigas têm ótimos resultados em matemática e ciências que são base para, neste caso, engenharia, porque é que algures no percurso elas sentem “este não é um lugar para mim”?

Voltamos um bocadinho aos role models quando olhamos à nossa volta. Na minha altura quando uma pessoa escolhia o curso pensava “como é que eu quero ser na minha carreira?” e somos muito influenciados pelo tipo de pessoas que vemos à nossa volta. O facto de haver poucas mulheres obviamente que depois influencia a escolha dos cursos. Infelizmente é assim, são poucas as pessoas que arriscam e dizem “vou testar um curso completamente aleatório”. A boa notícia é que com a democratização da tecnologia estes role models já passaram a existir para além do meu bairro ou da minha família ou do círculos de amigos meus e dos meus pais.

Se quiser contratar engenheiras mulheres para uma determinada posição é muito difícil. Elas existem, mas é difícil

Ainda assim estava a pensar nas grandes tecnológicas, naquelas que todos conhecemos, Facebook, Google, Amazon, Apple, estamos sempre a falar de homens, continuamos a falar de homens.

Sim, apesar de haver muitas mulheres em posições de liderança. Cada vez há mais, e mesmo em Portugal temos ótimos exemplos, temos uma série de multinacionais com mulheres à frente, a mudança é muito positiva e tenho a certeza que o facto de estar toda a gente mais atenta a esta desigualdade está a melhorar um bocadinho. Mas ainda assim, por muito que estejamos alertas e queiramos melhorar, não há mulheres suficientes. Se eu quiser contratar engenheiras mulheres para uma determinada posição é muito difícil. Elas existem, mas é difícil e, portanto, temos de voltar atrás, temos de criar mais exemplos que inspirem as pessoas mais novas a seguir carreiras tecnológicas e isso é um processo que demora tempo, mas é um caminho que temos a fazer. Se se resolve em 20 anos, honestamente, acho difícil, por tudo isto que eu disse. Se for a olhar para as primárias, secundárias e afins, hoje em dia o que os miúdos querem ser, os role models são os youtubers, passei de olhar para o círculo à minha volta para passar a olhar para a internet, e os meus role models são os youtubers, por isso, eu quero ser youtuber.

Do lado do investimento também há um problema, porque os números dizem que o dinheiro que é canalizado para equipas de projetos de startups em que a equipa inteira seja constituída por mulheres é mesmo uma minoria, são 2,9% de acordo com dados revelados sobre o mercado americano o ano passado [2019]. O que significa que os investidores também têm esse preconceito, ou seja, uma equipa só de homens não levanta questões e uma equipa só de mulheres levanta questões, porquê?

Não existe esse preconceito, aliás, hoje em dia até existe uma discriminação positiva.

Então porque é que só existe este dinheiro?

De novo, acho que é um problema de funil. Se comparar o número de mulheres que vem ter connosco com o número de homens, nem dá para comparar. Portanto, mulheres venham ter comigo, não há nenhum preconceito em relação às mulheres. Aliás acabo por investir muito mais tempo a falar com startups de mulheres e a ajudá-las com tempo que dedico, porque acho que é uma questão importante mas é um problema de funil. Há tantos projetos maus de mulheres como de homens, mas a verdade é que há muitos mais homens, se calhar, a arriscar do que mulheres. Acho que as mulheres têm de arriscar mais, têm de se chegar à frente e quando se chegam à frente com bons projetos os investidores não têm um bias, genericamente falando. Obviamente que haverá casos, histórias tristes, histórias más, existem, mas existem em todos os sítios.

É um problema de funil e é um problema que está a melhorar, portanto, venham mais projetos de mulheres ter comigo

Nas empresas tradicionais também existe, é um problema genérico. Mas se calhar nas startups temos a expectativa que sejam mais audazes a resolver esse problema, precisamente por também serem, até do ponto de vista de faixa etária, mais jovens, e de terem entrado já no mercado num mundo diferente que as empresas mais antigas encontraram.

Sim, é um problema de funil e é um problema que está a melhorar, portanto, venham mais projetos de mulheres ter comigo.

A década que passou e que foi a que começaste a trabalhar, terminaste o teu curso, fizeste a tua empresa, mudaste de vida, foi também para, pelo menos Portugal, uma época de grande mudança na forma como as pessoas procuram emprego, fazem empresas, até escolhem o sítio onde vão viver. Todo este movimento até agora tem sido uma história mais bonita do que feia. Como é que continua esta história na tua perspectiva?

Passámos de ser um ecossistema um bocadinho amador e como eu costumo dizer best effort, temos feito aquilo que nos é possível com os recursos que temos. Estamos agora a passar para um ecossistema um bocadinho mais maduro. Vamos ter startups que vão falhar, já tivemos, mas se calhar vamos ter histórias um bocadinho mais drásticas e dramáticas do que aquelas que tivemos na última década. Por outro lado, as coisas boas, estas maiores histórias de sucesso, se calhar vamos ter muito talento a sair e a ser reciclado e a começar as suas próprias empresas, vamos ter muito mais dinheiro disponível no mercado, foi assim que se fez o ecossistema de Silicon Valley. Os fundadores fazem dinheiro, dão dinheiro de volta ao ecossistema para as pessoas investirem em novas empresas e, portanto, há aqui um ciclo positivo . Nós ainda não tivemos um ciclo destes completo. Acho que na próxima década vamos ver esse ciclo a completar e vai ser extremamente benéfico para o ecossistema. Por outro lado, Portugal está-se a tornar altamente competitivo, não só porque de repente estas empresas são bem financiadas por investidores internacionais que colocam muito dinheiro no ecossistema; o que significa que quando quero andar rápido e tenho dinheiro, vou e pago e no dia em que não tenho engenheiros subo os salários, e isso depois causa alguma distorção nalguns setores. Outra das coisas, é um bocadinho estratégia do governo, houve uma atração massiva de empresas multinacionais e empresas de fora que vieram estabelecer os seus escritórios em Portugal e isso trouxe muito talento muito qualificado, que obviamente está a trabalhar com talento local e há aqui uma dinâmica de formação das pessoas e de aprendizagem de como é que este mundo tecnológico funciona, que é incrivelmente benéfica para toda a gente. Mas essas pessoas vieram também recrutar talento local, pagar-lhes muito bem e, portanto, esse talento não está disponível para as outras empresas, não está disponível para as PMEs, não está disponível para fazer esta transição digital e transformação digital de que o país precisa.

Vamos ter startups que vão falhar, já tivemos, mas se calhar vamos ter histórias um bocadinho mais drásticas e dramáticas do que aquelas que tivemos na última década

Como é que isso se resolve?

Precisamos de formar mais pessoas, precisamos de ter uma economia muito mais sólida, capaz de investir à séria em soluções tecnológicas e estas forças são um bocadinho opostas às vezes e criam-se departamentos de multinacionais e departamentos do estado que de repente ficaram sem os recursos do IT porque foram roubados por startups internacionais que foram atraídas para cá. Temos de estar preparados para lidar com isto. A parte boa é que os salários aumentaram significativamente nos últimos anos e, portanto, toda a gente está contente, obviamente que criam menos startups, porque agora são bem pagos e têm uma vidinha de luxo – “porque é que hei de criar uma startup e submeter-me a esse sacrifício?”. Acho que são desafios para a próxima década, que se calhar ainda nem toda a gente percebe muito bem o impacto, mas que já existe.

Os miúdos que estão a entrar agora na faculdade, seja na tua, no Técnico, seja noutras, vão continuar a pensar daqui a cinco ou sete anos que “se calhar eu quero antes ter uma startup do que ir trabalhar para uma grande empresa?”?

Depende um bocadinho, em sete anos as coisas mudam tão rápido que não sei muito bem.

Achas que vai continuar a ser sexy?

Acho que sim, mas não é uma questão de ser sexy. Acho que é uma questão de perceber que é um caminho possível e perceber que é uma aventura de crescimento pessoal incrível, e há pessoas que naturalmente tendo exemplos à sua volta de pessoas que fizeram isso sentem-se atraídas por essa forma de fazer as coisas. Por outro lado, não são só os miúdos que saem da faculdade que criam startups, aliás, há vários estudos que dizem que os fundadores mais bem sucedidos começam empresas mais ou menos ali na casa do 40 ou 50 e, portanto, há regras, há exceções, há um bocadinho de tudo. É um equilíbrio e acho que Portugal nos últimos anos acordou para esta forma de fazer as coisas, que não era muito difundida e hoje em dia já é.

Quem é que é o teu role model?

Quem é que é o meu role model? Honestamente não sei muito bem, não tenho um nome, eu inspiro-me muito com coisas pequeninas do dia-a-dia, inspiro-me com a família, inspiro-me com os amigos, inspiro-me com conversas que me ensinaram alguma coisa, inspiro-me com as pessoas com quem trabalho, portanto, não tenho assim um guru que seja a minha grande inspiração, mas bebo muito inspiração de coisas pequenas e acho que aí é que está a magia.