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As grandes marcas querem os nossos sonhos

por Abílio dos Reis (Texto) | 29 de Março, 2022

Numa Era em que o privado é cada vez menos privado, os sonhos permanecem como um dos últimos campos resolutos do que é verdadeiramente nosso e apenas nosso. O sonho (ainda) é aquele o lugar íntimo onde temos as nossas ilusões e utopias, os nossos desejos mais secretos e onde a fantasia se alinha com a ilusão e devaneio. Porém, o sonho pode também ser um enorme repasto para a avareza e sovinice. E as marcas sabem-no e querem aproveitar-se disso.

O sono que leva ao sonho pode ser uma viagem e tanto. É a nossa montanha-russa particular para sítios cujo status quo, dinheiro ou trabalho não ditam as regras do destino final. O sonhotem a capacidade para nos transportar para novos e maravilhosos sítios, atirar-nos diretamente para o epicentro de aventuras perigosas e excitantes. No fundo, são horas que reavaliam as nossas vidas acordadas a partir de uma perspetiva completamente diferente.

O problema, parece, está no facto de as grandes marcas estarem à procura de maneiras de descodificar o trinco desta porta de entrada para o nosso precioso baú de memórias e vasculhar o recôndito daquilo que é tido como pessoal e a modos que intransmissível. O tema esteve na ordem do dia há sensivelmente um ano, mas na última semana a The Hustle voltou a tocar no tópico e a questionar os investigadores e especialistas do sono sobre a matéria — que estão preocupados com o que isso poderá implicar para a nossa saúde e privacidade no futuro. A publicação começa pelo início da polémica e recorda a experiência levada a cabo no ano passado pela Molson Coors (uma das maiores fabricantes de cerveja do mundo) em que:

  • Num velho armazém no centro de Los Angeles, 18 pessoas estavam a ter a sua atividade elétrica cerebral registada através de um eletroencefalograma enquanto viam um vídeo animado repleto de cascatas e paisagens verdes idilicamente exuberantes — e flashes de produtos Coors.
  • Quando chegou a hora de pegar no sono, foi-lhes pedido que ouvissem durante 8 horas a banda sonora do que tinham visto (que, diga-se, carrega nos sintetizadores num estilo hipnotizante pouco inocente).

Acontece que os métodos utilizados nesta campanha não vieram ao acaso nem surgiram do nada. A técnica utilizada teve por base naquilo que a comunidade científica designa por “Targeted Dream Incubation” (TDI) e que é tida como potencial tratamento para a perturbação de stress pós-traumático (PSPT) ou depressão, por exemplo. Há um par de anos, foi igualmente notícia quando uma equipa do MIT, que estuda o TDI, desenvolveu a Dormio, uma pulseira que ajuda a “piratear” os sonhos (leia aqui como).

Mas voltando ao anúncio e parafraseando a The Hustle. O “objetivo declarado” da Coors era “digno de ficção científica”: a empresa queria “moldar e obrigar [o] subconsciente” a sonharcom cerveja. E não é que o conseguiu? Cerca de 30% dos participantes sugeriram ter sonhado com os produtos. O vídeo em questão era o anúncio da marca para passar no Super Bowl em 2021 e a Coors até publicou no YouTube como tudo foi feito.

Orquestrar um sonho

Mas nada disto é propriamente novo. A polémica estalou quando no último verão, quando 40 profissionais assinaram uma carta aberta a alertar para os perigos da inércia nesta matéria. É que se não se fizer nada, acreditam os signatários, os nossos sonhos vão rapidamente virar o salão de jogos da publicidade das grandes marcas. Onde os sonhosdeixam de ser sonhos e viram pesadelos.

Porque não se pense que a Coors é caso único. Um inquérito revelou que 77% dos marketers têm planos para utilizar tecnologia que interfere nos sonhos nos próximos três anos. Assim como há marcas que já estudam a viabilidade dos sonhos para tentar manipular os nossos comportamentos de consumo. O problema, segundo os signatários da carta, é que a tecnologia TDI ainda é muito embrionária e pouco aprofundada. Uma das professoras alerta mesmo que os “sonhos são o nosso último espaço sagrado” e lembra que durante o sono estamos vulneráveis e nem nos apercebemos “de que estamos expostos a este tipo de técnicas”. Ou seja, a tecnologia tem potencial para fazer muita coisa boa, mas nas mãos erradas…

  • Para uma questão de perspetiva: os autores da carta acreditam que as marcas podem fazer uso dos milhões dispositivos inteligentes que já estão em casa das pessoas enquanto dormem e lembram que não é uma questão hipotética ou ideia para um filme de ficção científica.

As opiniões dividem-se 

Se por um lado há toda uma série de profissionais que alertam e vêem nesta jogada de marketing uma intrusão que pode levar a problemas reais (nomeadamente agravamento de, por exemplo, problemas de adição), outros acreditam que esta técnica não difere muito dos “reclames” que já consumimos diretamente quando acordados.

Um desses casos é o da professora Deirdre Barrett, de Harvard, que ajudou a Coors a fazer o vídeo e conduzir a experiência. Ela acredita que o receio é desproporcional à realidade atual, dado que, na sua opinião, “os anúncios dos sonhos são tão eficazes nos consumidores como quando estão acordados”. A juntar-se a estas vozes estão alguns jornalistas especializados em anúncios da Internet, que destacam o facto de que não é possível aceder às métricas normais dos ads nos sonhos. “Não podes seguir o rasto se alguém clicou num anúncio num sonho”, escreveu.

Não se pense que tudo isto é assunto distante e muito além porque:

  • De acordo com um inquérito da empresa de colchões Plush Beds, 7 em cada 10 pessoas já sonhou com produtos de marcas conhecidas, fosse devido a anúncios fosse porque os utilizam diariamente. O que o estudo também revela: mais de metade dos inquiridos que sonharam com os produtos tiveram ainda mais vontade de lidar com as marcas.
  • Sonhar com publicidade é coisa de ficção científica? Nem por isso. Mais do que o ser algo de um futuro distópico, poderá ser coisa de um presente não muito distante.