O que é que a tecnológica Intel e o clube de futebol Atalanta têm em comum?
por Miguel Magalhães (Texto) | 24 de Outubro, 2023
O primeiro dia do Data Makers Fest, no Porto, combinou discussões mais complexas sobre inteligência artificial com a apresentação de case studies práticos, de como os dados estão a mudar uma série de setores, nomeadamente o futebol.
Na Alfândega do Porto, mesmo junto ao rio Douro, reuniram-se esta segunda-feira cerca de 700 pessoas para falar de dados, da sua utilização e da sua influência na tomada de decisões. São esses os objetivos do Data Makers Fest, evento que, ao longo de dois dias (23 e 24 de outubro) vai juntar no Norte de Portugal alguns dos mais conceituados “data scientists” do mundo inteiro. Da agenda, fazem parte representantes de empresas como a Intel, a Epic Games, o IKEA, a Meta, a Hugging Face, entre muitas outras, preparados não só para discutir dados e IA, mas os prós e contras da sua utilização (com mais ênfase nos prós, obviamente).
A primeira sessão do dia ficou a cargo de Wei Li, que é há mais de 20 anos o responsável por AI e Analytics da Intel. Fundada em 1968, a empresa americana passou por todas as grandes transformações tecnológicas das últimas décadas, dos primeiros computadores que ocupavam salas inteiras aos portáteis que cabiam nas nossas malas, até à era dos smartphones. Com um foco predominante no hardware, a Intel tornou-se numa referência nos chips presentes nos aparelhos mais proeminentes da nossa vida. Contudo, os últimos anos trouxeram uma competitividade ainda maior no setor tecnológico, com as principais empresas a procurem posicionar-se da melhor maneira em todos os verticais. A Apple começou a produzir os próprios processadores, a NVIDIA tornou-se numa “trillin-dollar-company” e as asiáticas AMD e Foxconn foram acompanhando a crescente procura por um fornecedor “barato e eficiente” de processadores.
Por isso, Li veio ao Porto para apresentar o “buzz” da inteligência artificial como a grande oportunidade para a Intel, não só na componente de hardware, mas também no software. Seja para desenvolver um modelo inovador, seja para uma simples integração de IA numa plataforma, qualquer empresa necessitará direta ou indiretamente da infraestrutura da Intel (ou de uma das rivais) para tornar a sua ideia realidade. À primeira vista, a aposta mais óbvia é no desenvolvimento de chips cada vez mais potentes se queremos que tecnologias como o ChatGPT ou o Stable Diffusion dêem resultados cada vez mais satisfatórios.
O segundo caminho (e menos convencional) foi aquele que o executivo da Intel decidiu dedicar mais tempo – o software. Hoje em dia, a tecnológica conta com uma “suite” de serviços, nos quais se incluem parcerias com ecossistemas de desenvolvimento de software como a PyTorch ou a Hugging Face que lhe permitem dar uma solução completa para qualquer developer. Dois dos case studies mais interessantes que escolheu trazer foram a parceria com a Meta para o desenvolvimento do seu Large Language Model (LLM), o Llama 2, e a criação de um supercomputador chamado Aurora Gen AI, com cerca de 60.000 GPUs e capacidade de correr um bilião de parâmetros em simultâneo.
A discriminação e a reedição do GDPR
A seguir ao almoço as atenções viraram-se para o tema da regulação e ao impacto que o “AI EU Act” poderá ter nas empresas europeias a trabalhar diretamente com dados e inteligência artificial. Num painel composto por Kai Zenner, assessor no Parlamento Europeu para Políticas Digitais, e por Carlos Muñoz Ferrandis, ex-conselheiro para Regulação na Hugging Face, um dos pontos mais importantes da discussão esteve em torno da forma como os dados podem ser usados de forma transparente. A utilização de algoritmos em processos de recrutamento para uma empresa, na seleção de alunos para uma universidade ou na atribuição de um crédito à habitação é cada vez mais comum, mas isso não significa que não há desafios a abordar: por um lado, é necessário um policiamento constante do seu desenvolvimento para garantir que não há algum tipo de discriminação (“Bias”) na sua base; por outro, mesmo no caso de serem construídos da forma mais responsável possível, é preciso encontrar uma forma de explicar ao cidadão comum o modo como funcionam, o que nem sempre é fácil.
Relativamente ao impacto de legislação europeia nas empresas houve uma analogia feita com 2018, altura em que a maior parte dos negócios digitais foi obrigada a transformações significativas na forma como lidava com a privacidade dos seus clientes/utilizadores. O GDPR criou uma série de regras que todos passaram a ter de obedecer e que, apesar de alguma contestação inicial, hoje em dia, já é um dado adquirido em todos os sites e plataformas a operar na Europa. A inteligência artificial não deverá ser diferente, havendo claro a natural preocupação de a regulação não “matar” potenciais inovações ou atrasar a Europa face a outros mercados.
“97% do jogo acontece sem a bola”
É uma frase do lendário jogador e treinador holandês, Johan Cruiff, que ajuda a explicar a necessidade de olhar para o futebol, para algo mais do que um jogo de fintas, golos e assistências.
Foi esse o tema que fechou o primeiro dia do Data Makers Fest, com as keynotes de dois especialistas em dados no desporto-rei – Floris Goes-Smit e Sudarshan Gopaladesikan. Floris já trabalhou como consultor para vários clubes holandeses e para Louis Van Gaal, ex-selecionador dos Países Baixos, e Sudarshan foi durante cinco anos o principal responsável por Analytics do Benfica, estando agora ao serviço da Atalanta, clube adversário do Sporting na Liga Europa.
As duas sessões complementaram-se na apresentação de uma ideia comum: num jogo tão emocional, é um desafio muito grande levar jogadores, treinadores e diretores desportivos a tomar alguma decisão com base nos dados. O futebol é um jogo de relações e de opiniões fortes: um treinador que optou sempre por uma determinada formação tática para atacar e defender; um jogador que tem uma forma peculiar de ocupar o seu espaço e ligar-se com os colegas de equipa.
No seu dia-a-dia, Floris desenvolve algoritmos para ajudar equipas na sua forma de jogar com métricas que vão para lá das estatísticas mais óbvias. “O futebol é um jogo de criação de espaço e muitas vezes esquecemos que para um golo acontecer houve a movimentação simultânea de 22 jogadores”, afirma.
Já Sudarshan tem um foco muito maior nos mercados de transferências e na definição da melhor altura para comprar e vender um jogador; não só com base no seu potencial, mas também na oferta e procura por um determinado tipo de jogador e no impacto que isso tem na valorização dos ativos de uma equipa. E ao contrário de Floris, acredita que a posição que ocupa como data scientist é menos ingrata do que alguns dos seus pares, dado que consegue rapidamente perceber o impacto dos seus algoritmos. Ou estão a dar lucro ou não estão.
O Data Makers Fest continua hoje (24 de outubro) na Alfândega do Porto.