António Murta: “as coisas mais interessantes a acontecer no mundo estão na fronteira entre a tecnologia e a biologia”
António Murta é um nome incontornável quando se fala de inovação e de empreendedorismo em Portugal – um percurso que começou num país substancialmente diferente de hoje. Fez parte da equipa que na Sonae Distribuição mudou a forma como supermercados e hipermercados operam em Portugal e a experiência como CTO no grupo liderado por Belmiro de Azevedo levou-o à criação da primeira empresa que fundou, a Enabler, hoje Wipro. Como conta nesta conversa, “a certa altura passei ao estatuto de empresário, porque sentia que já sabia o suficiente para poder fazê-lo”.
A Enabler foi, anos mais tarde, vendida à Wipro, empresa indiana líder no setor, e apesar de feliz por se manter a operar em Portugal, António Murta confessa que não era esse o desfecho que mais ambicionava: “o que mais desejava era listar [entrar em bolsa], e não era pelo dinheiro, era mesmo pelo orgulho”.
Já depois dessa venda, foi também co-fundador da Mobicom que acabou igualmente adquirida por um gigante tecnológico, a Microsoft.
É este empresário, “cansado de tecnolgia per si”, que não se reconhece como um “born entrepreneur”, que lidera agora uma empresa, a Pathena, focada em temas de saúde. A ele, interessa-lhe especialmente a interseção entre a tecnologia e a biologia e a ideia – ou propósito, será mais correto assim – de democratizar o acesso a uma medicina mais inteligente e mais personalizada. O mesmo interesse que o vai levar a estudar Medicina a partir de setembro, fiel à ideia em que acredita de que “nada está escrito na pedra, tudo é possível”.
Numa entrevista no âmbito da rubrica “Ideias para 2021” que resulta de uma parceria entre o The Next Big Idea e a Casa de Investimentos, António Murta partilhou as suas ideias sobre tecnologia, inovação, gestão e a estratégia que Portugal pode seguir para ser um lugar de referência pelo talento e não apenas um laboratório de testes.
Estamos no limiar de um novo desenvolvimento das práticas médicas que vão permitir uma muito maior especialização dos tratamentos sem que isso signifique necessariamente custos exorbitantes. Fazer isto para os muito ricos é mais fácil e eu estou a falar de trazer isto para o comum dos mortais.
as coisas mais interessantes que se estão a passar no mundo estão na fronteira entre a tecnologia e a biologia
Se hoje estivesse na universidade, o que seria o seu objetivo depois do curso: criar uma empresa ou ir trabalhar para uma empresa maior e já com espaço no mercado?
Antes de mais nada, provavelmente mudava a minha escolha de há 40 anos. Não faria Engenharia de Sistemas, faria Engenharia de Sistemas Biológicos ou Biologia Sintética. Porque acho que as coisas mais interessantes que se estão a passar no mundo estão na fronteira entre a tecnologia e a biologia.
Sobre o que faria a seguir, depende muito, porque eu não sou um born entrepreneur. Há pessoas, raras, que são isso. Eu trabalhei com um, com o engenheiro Belmiro de Azevedo, mas eu não sou um. Acabei por ser um empreendedor logo no início da minha carreira, mas durante muito tempo trabalhei por conta de outrem com grande prazer e satisfação. A certa altura passei ao estatuto de empresário, porque sentia que já sabia o suficiente para poder fazê-lo.
Eu acho que é possível fazer as duas coisas. Não criava necessariamente uma empresa logo a seguir. Porque acho que às vezes faz bem trabalhar em grandes empresas, para aprender a estrutura e aprender com os outros. Ninguém nasce ensinado, aprende com os outros.
Há duas empresas das quais foi fundador que acabaram por ser vendidas a gigantes. Uma foi com a Wipro [Enabler] e a outra foi com a Microsoft [MobiComp]. Essa é a maior ambição que uma startup tecnológica pode ter em Portugal?
Não é única. É uma das duas. As duas possibilidades são listar e fazer exit para um gigante. E isso não é mau. Ainda hoje a Wipro está em Portugal e eu tenho muita satisfação por isso, sinto-me honrado por isso. Mas não é o outcome que eu mais desejava, que era listar, e não era pelo dinheiro, era mesmo pelo orgulho.
O meu empresário favorito é o senhor Ortega, que fez a Inditex. Provou que não há nada escrito na pedra, tudo é possível
Mas isso é possível?
É possível. Digamos que já sou um decano. Felizmente a geração seguinte já soube fazer as coisas ainda melhor. Temos, por exemplo, uma Outsystems, que eu acho que está a dar os passos certos para listar e não posso se não ficar muito orgulhoso pelo Paulo Rosado e por tudo o que ele fez.
Mais próximo ainda de mim, o José Neves fez a Farfetch, que tem uma dupla condição portuguesa e inglesa. Mas o backbone é em larga medida português. E o Zé fez uma companhia em 10 anos que vale 20 BI (20 mil milhões), cotou-a e é líder mundial de e-commerce em fashion. Mais uma vez um líder improvável.
O meu empresário favorito é o senhor Ortega, que fez a Inditex. Para mim é um herói. Fez a maior companhia de moda do mundo a partir de Arteixo, na Corunha, o sítio mais improvável do mundo para criar uma empresa de moda. No entanto ele provou que não há nada escrito na pedra, tudo é possível, e fê-lo. É interessante que, a poucos quilómetros, uma outra pessoa não galega, um português, o José, tenha criado a maior empresa de e-commerce de fashion (moda) do mundo a partir de Portugal, que também não é um sítio provável.
Acredito que uma parte desta perda de compras físicas para compras online vai ser revertida com naturalidade para os retalhistas físicos
A aceleração que vivemos no último ano em termos de comércio eletrónico era algo que muitas empresas do setor desejavam. Agora aconteceu, porque a pandemia mudou esses comportamentos. Estamos perante novos problemas?
Temos de analisar com cuidado o que se está a passar na pandemia. Embora já vejamos a luz ao fundo do túnel, ainda estamos no processo de garantir que resolvemos o problema. Há aqui um fenómeno estrutural e um conjuntural.
O fenómeno estrutural tem que ver com uma transição acelerada para e-commerce, e que é visível, por exemplo, entre os meus comportamentos de consumidor e os comportamentos dos meus filhos. Os meus filhos compram com conforto utilizando um canal de e-commerce coisas que eu não compraria. Tem que ver com dois posicionamentos distintos entre duas gerações.
Mas depois há uma dimensão conjuntural. Todos estamos severamente constrangidos, limitados, confinados. E isso significa que o medo de comprar numa superfície comercial determinou comportamentos que eu acho que se vão reverter em parte. E é bom que se revertam, porque os seres humanos são seres sociais e, logo que possam, vão recuperar comportamentos que são naturais neles. Acredito que uma parte desta perda de compras físicas para compras online vai ser revertida com naturalidade para os retalhistas físicos. Porque o ato de compra é social, quer pelo encontro com outras pessoas, quer pelo tacto, quer pela experiência de compra, que não é igual à compra digital.
As compras online não são, ao contrário do que se possa pensar, assim tão boa notícia?
Aqui sou provavelmente enviesado. Tendo trabalhado dezassete anos em distribuição um pouco por todo o mundo tenho algum carinho pela noção de loja. Custa-me ver desaparecer lojas que acrescentam valor. Entendo que o comércio online tenha o seu lugar, mas entendo que a compra física e a loja enquanto espaço também têm o seu lugar.
Eu sou um comprador compulsivo de livros. Tenho 6 mil livros em casa, dos quais li um terço, e não consigo não gostar de livrarias. São das poucas lojas que visito com absoluta regularidade. Não visito muitas, visito sempre as mesmas, mas são lojas com as quais eu tenho relação, em particular com os livreiros. Também compro livros online, na Book Depository, que é uma empresa da Amazon, que me faz um serviço impecável. Mas compro de forma cirúrgica, coisa que não faço na livraria. Na livraria às vezes compro de forma caótica. Mas é a experiência caótica de surpresa e de descoberta na loja física que é muito mais fácil do que numa loja virtual.
Cansei-me da tecnologia per si e também me desliguei de um comportamento que as grandes empresas de tecnologia do mundo perseguiram com padrões de capitalismo que em alguns casos eu não consigo respeitar
Nos últimos anos, a saúde tem sido a área que mais o mobiliza. Porquê?
Por uma combinação de oportunidade e sense of purpose. Cansei-me da tecnologia per si. É normal que um tipo se entedie volvidos 35 anos e também me desliguei de um comportamento que as grandes empresas de tecnologia do mundo perseguiram com padrões de capitalismo que em alguns casos eu não consigo respeitar. Estou a falar do capitalismo de vigilância, da falta de visibilidade de determinados comportamentos, que eu acho que que não são corretos e com os quais eu não quero ter nada a ver,
Mas há o outro lado: sentir que saúde tem um sentido de serviço que está para lá da simples economia. A minha mãe queria que eu fosse médico e eu passei alguns meses nos hospitais a fazer serviço de voluntariado para descobrir que não podia ser médico.
Mas isso manteve-se ao longo da vida, ao ponto de confessar que está a planear fazer um curso de medicina.
Vou iniciar. Não sei se vou concluir, mas vou com certeza iniciar. Porque já sei bastante, mas quero aprender mais. E quero um fio condutor, um curriculum que me ajude organizadamente a estudar.
Com este contexto tecnológico, onde é que estão hoje as novas fronteiras da saúde que lhe fazem sentir essa paixão?
A vantagem já não está numa especialidade, está na interceção entre especialidades. E há uma interceção entre tecnologia e saúde, tanto na dimensão fármaco como na de medicina. Eu estou mais próximo da medicina, não sou bioquímico, para todos os efeitos tenho gosto pela medicina.
Acho que estão a acontecer coisas que vão alterar profundamente a matriz do ato médico, no sentido da escalabilidade, do acesso democrático. E isso é tão interessante e tão impactante, tem tanto potencial, que quero estar aí.
Tem mais curiosidade sobre a ideia do que poderá ser o futuro do ser humano na intersecção entre a tecnologia e a medicina ou mais receio daquilo em que se poderá tornar o ser humano, que para alguns pode ser o tal super-homem biotecnológico, que já não é bem humano?
Eu não tenho muito receio disso. Se lermos a história da medicina, percebemos que quando se começaram a fazer as primeiras intervenções de cirurgia aberta muitas pessoas diziam que aquilo era não humano, atos inaceitáveis, que era violar o corpo, que estávamos a praticar atos de Deus. Hoje é absolutamente comum fazermos isto. Mais recentemente descobrimos a laparoscopia e até limitámos a utilização da cirurgia aberta. E aquilo que era anormal passou a normal. A cada momento, os medos que nós temos são diferentes e depois endogeneizamos tudo.
Há uma classe que representa 70% dos custos da saúde, que são os doentes crónicos, que não são bem seguidos
Todo o potencial que existe para prolongar a vida humana e para lhe dar mais qualidade é visto como uma medida de desigualdade, porque não vai estar acessível para todos…
É aí que eu tenho um interesse particular em democratizar o acesso. Uma das coisas boas da tecnologia é a escalabilidade, talvez seja a melhor. Hoje 90% do market value das principais bolsas do mundo está relacionado com ativos incorpóreos. O corpóreo definitivamente perdeu a batalha com o incorpóreo. O incorpóreo tem tanto valor porque escala. Escalam as moléculas em farma, escala a propriedade intelectual em software, e isso traduz-se em valor criado por unidade de tempo.
Eu defendo que a medicina precisa de aumentar a sua escalabilidade sem prejuízo nenhum da qualidade da humanidade nem do serviço médico associado. Há uma classe que representa 70% dos custos da saúde, que são os doentes crónicos, que não são bem seguidos. Temos o sistema de saúde no mundo desenvolvido espetacular para tratar agudos, mas não tão espetacular assim para seguir crónicos. Aplicamos a triagem de agudos na emergência no hospital. Mas não temos na nossa linguagem comum a expressão “triagem crónica”, que devia ser absolutamente capital para numa população de crónicos de milhões de pessoas divisar os 2 mil que precisam da minha atenção. Isso é crucial, porque os que carecem de atenção esta semana não são necessariamente os mesmos que carecem de atenção na próxima semana.
E isso tem de ser feito de uma maneira barata, para ser acessível e democrático. Acredito que isso é possível. É isso que me motiva a investir e a estar na interceção entre a medicina e a tecnologia.
Qual é a ideia que acredita que vai mudar os próximos dez anos?
Se não tivesse limitações financeiras a primeira que eu escolheria era a impressão de órgãos humanos compatíveis, de rins, de pâncreas. Ou então o fabrico, a partir de animais que tivessem órgãos compatíveis com humanos. Era acabar com a falta de órgãos para doação. É crucial resolver este problema e acabar com essa coisa abjeta que é o tráfico de órgãos. Não consigo pensar em muitas coisas tão repugnantes quanto essa.
Também acho muito importante e corresponderá a uma alteração profunda da medicina nos próximos anos todo o impacto da genómica, da lipidómica, da proteómica. Nós vamos a caminho de patamares de medicina mais personalizados, não necessariamente à pessoa, isso ainda é muito caro. Mas mais segmentados, com guide lines médicas mais em árvore e menos lineares, menos o mesmo tipo de tratamento para todas as pessoas.
Obviamente este conceito é particularmente importante quando se aplicam terapias altamente tóxicas, com efeitos laterais nocivos pesados e em que importa garantir que só se administra esses fármacos caso se tenha o mais alto padrão possível de certeza da eficácia dessa terapia. Durante muitos anos estivemos limitámos, nós lutamos com as armas que temos. Estamos no limiar de um novo desenvolvimento das práticas médicas que vão permitir uma muito maior especialização dos tratamentos sem que isso signifique necessariamente custos exorbitantes. Fazer isto para os muito ricos é mais fácil e eu estou a falar de trazer isto para o comum dos mortais.
Por último é um dos desafios mais importantes do mundo e que tem uma dupla face. Por via da nossa ingestão sistemática de antibióticos na comida, estamos a ficar mais resistentes a antibióticos. O que é perigosíssimo, porque os antibióticos são uma conquista muito recente. Antes da II Guerra não tínhamos antibióticos. E não podemos de maneira nenhuma perder esse arsenal tecnológico. Temos de garantir que nos mantemos com estas ferramentas, seja pela regulação de produção alimentos, seja por descoberta de novos fármacos.
Por outro lado, temos um problema nos hospitais, temos de garantir que temos uma forma melhor de atacar as bactérias multirresistentes, que já são uma das fontes de perigosidade com a qual os pacientes e os médicos e enfermeiros têm de viver. Quem lá vive todos os dias desenvolve resistências. Quem visita um hospital está mais sujeito.
A ideia de Portugal como laboratório é agradável como tática, não como estratégia
A ideia de Portugal como um laboratório perfeito para testar soluções é uma ideia agradável ou o país devia pensar em ser mais do que isso ou diferente disso?
É uma ideia agradável como tática, não como estratégia. Este é um mercado tão pequeno, que não conseguimos atrair investimentos estratégicos para Portugal pelo mercado. Só vejo uma equação que seja atraente para Portugal: é pelo talento das pessoas. O maior ativo de Portugal são os portugueses. Os portugueses são excelentes trabalhadores em todo o mundo e estão mais bem educados do ponto de vista tecnológico e científico do que alguma vez estiveram.
Isso já foi descoberto por muitas organizações de topo mundial. A Google considera os programadores portugueses os sextos melhores do mundo. Sextos! Não é uma posição normal Portugal estar em sexto lugar no ranking mundial. No entanto esta é a opinião da Google, opinião interna não ventilada. Quando isto acontece isto tem de ter razões.
No domínio das biociências Portugal tem hoje 3 mil formados em ciências da vida. E é criminoso que 1% destes 3 mil profissionais trabalhem em empresas. 99% trabalha em universidades. Acredito que nos próximos anos vamos atrair para Portugal ensaios clínicos, que são uma parte muito grande do custo dos medicamentos. Porque temos talento e custo compatível para fazer isso em Portugal. Mas também é sabido que, quando se faz isso, normalmente uns anos depois as organizações que investiram nos ensaios clínicos dizem: “aqui há qualidade para desenvolver os fármacos”. E isso significa terapias celulares, terapias medicamentosas tradicionais e digitais, que eu acho que podem perfeitamente ser feitas de Portugal para o mundo.
A Bial prova-o. Como é que uma empresa relativamente tão pequena consegue, reinvestindo permanentemente tudo, de uma maneira extremamente avisada, chegar a dois ou três fármacos ao mercado? É algo extraordinário. O que queríamos mesmo é não uma Bial, mas dez. Porque isso significa valor incorpóreo e hoje é aí que está 90% do valor económico das bolsas no mundo. Por isso eu acredito que podemos fazer o caminho dos laboratórios, mas para chegar à difusão a partir de Portugal para o mundo.
- Veja a entrevista a António Murta neste episódio do The Next Big Idea
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