Web Summit: Como é a crise num mundo onde existem Unicórnios?
por Tomás Gomes (Texto) | 5 de Novembro, 2022
O mundo das startups não é indiferente ao contexto económico mundial. Perante uma crise, os investidores retraem-se, mas garantem que não vão a lado nenhum. Otimistas, os fundadores de startups aguardam o regresso ao tempo em que se falava mais de Unicórnios do que de desvalorizações.
Se esta semana passou pelo Parque das Nações, em Lisboa, ou viu alguma reportagem sobre a Web Summit, dificilmente acreditaria que o capital de risco na Europa (venture capital), que totalizou um investimento de 16 mil milhões de euros no terceiro trimestre deste ano, caiu 44% face ao mesmo período do ano passado, e 35% em relação ao segundo trimestre de 2022.
De um lado, uma capital europeia a lidar com a inflação perto dos dois dígitos, traduzida num aumento do custo de vida, que se foi agravando desde o início do ano devido à invasão da Ucrânia pela Rússia, o que por sua vez dificultou ainda mais o acesso a matérias-primas e fez encarecer o preço de fontes de energia tradicionais, como o gás ou o petróleo. Do outro, uma cimeira tecnológica a funcionar na capacidade máxima – ao segundo dia chegou a acolher no recinto, que inclui a Feira Internacional de Lisboa e a Altice Arena, 71.033 pessoas, com um novo recorde de 2.296 startups a participar no evento.
Numa cidade que não é exceção no panorama económico mundial, onde a Europa está no epicentro dos acontecimentos, podia parecer, à primeira vista, que aquelas dezenas de milhares de pessoas viviam num mundo à parte. Mas se é verdade que ali existem Unicórnios, isto é, empresas avaliadas em mais de mil milhões de dólares, também é verdade que ali se vive com os pés bem assentes na terra.
Os empreendedores e investidores estão atentos à crise, tanto que este foi um dos principais tópicos da cimeira. Segundo os números, está a entrar menos dinheiro no ecossistema através de venture capital. A pergunta impõe-se: os dias em que o dinheiro em abundância alimentava os sonhos dos fundadores de startups chegaram ao fim? A resposta está longe de ser linear.
Inflação ou incerteza? A razão pela qual o investimento abrandou
No dia dois de novembro, o segundo do evento, foi divulgado um estudo da PitchBook, em parceria com a Web Summit, que indica que a inflação não está a ser o motivo da desaceleração do investimento de risco neste ano de 2022.
Das 142 empresas de capital de risco inquiridas para o relatório, 35% afirmam que o aumento da inflação não afetou a sua estratégia de investimento e apenas 8% relataram ter reduzido significativamente os investimentos.
“Há tanto dry powder [expressão em inglês que se refere ao capital disponível do setor privado para investir] que precisa ser implantado, não é de admirar que a inflação esteja a ter tão pouco impacto sobre os investimentos”, disse Paddy Cosgrave, cofundador e CEO da Web Summit, na sequência do resultado divulgado.
“É encorajador ver que muitos investidores continuam a investir apesar da incerteza do mercado”, indica em comunicado Kyle Stanford, analista de capital de risco do PitchBook. “Embora os dados mostrem um declínio na atividade de investimento em comparação com 2021, a negociação global ainda está bem acima do ritmo histórico”, salientou.
Se a inflação não é a razão, incerteza é a palavra que sobra e que melhor traduz o abrandamento do investimento que é palpável entre alguns fundadores das startups à procura de financiamento.
No palco sobre Growth [crescimento], a israelista Merav Bahat é uma voz com autoridade no que toca a tempos de incerteza. Depois de quase cinco anos na Microsoft, onde teve como último cargo a posição de General Manager Cloud Security Business, decidiu criar em 2021 a Dazz, uma empresa de cibersegurança que obteve um financiamento de 50 milhões de euros, precisamente de uma venture capital. Agora, dá dicas sobre fundraising durante este período de crise a novos fundadores.
Na plateia estava Karol Wegner, CEO da BeeSpeaker AB, uma startup sueca cuja aplicação permite aprender novas línguas através da interação com um nativo digital desse mesmo idioma, que decidiu vir à Web Summit para conseguir um investimento de 300 mil euros.
Em conversa com o The Next Big Idea, Wegner diz “que as empresas de venture capital e outras estão a utilizar este contexto de crise para baixar a avaliação das startups”. “Tivemos de ajustar as nossas expectativas à realidade do mercado e baixar a avaliação. Isso ajudou. Como uma startup a dar os primeiros passos, temos de nos saber ajustar à oferta do mercado”, sublinha.
Com fundo maneio para garantir os próximos 16 meses de funcionamento da empresa, o CEO da BeeSpeaker AB está mais focado no desenvolvimento da sua aplicação e em angariar um maior número de clientes, assim, quando este período de crise passar, estará numa posição ainda melhor.
Apesar do “receio” face ao atual contexto económico, Merav Bahat sublinha que empresas de investimento continuam a ter dinheiro. No entanto, confessa, a seu ver, “quando a porta se voltar a abrir, os investimentos vão ser mais moderados”.
Para Bahat, este “não é o melhor período para angariar dinheiro”. Apesar de acreditar que vai continuar a haver investimentos, se estivesse na pele de um fundador de uma startup, diz, focar-se-ia em garantir liquidez para um período não inferior a seis meses, para que a gestão não se torne stressante e essa pressão resulte em erros de gestão. Depois, a sua prioridade seria o desenvolvimento do produto e do modelo de negócio.
No pavilhão ao lado, Bassel Assaad, CEO e fundador da Tracee (Mirdad), uma startup com sede em França que criou um sistema de acompanhamento de donativos, sobretudo para seguir a rota do dinheiro enviado para países onde os níveis de corrupção são elevados, é um outro exemplo das dificuldades que muitas empresas enfrentam atualmente para levantar investimento.
Apesar de esta ser uma startup muito jovem, cujo site foi lançado no primeiro dia da Web Summit, Assaad conta que, segundo a sua pesquisa de mercado, é claro que as avaliações estão a encolher. “Ouvi casos de seed investments em que as avaliações entre oito e 16 milhões de euros caíram para quatro ou cinco”, conta.
Com a empresa fundada em setembro e já em processo de fundraising, Bassel assegura que a Tracee está a crescer a um ritmo muito rápido, mas que a realidade económica atual o obrigará a repensar e a recalcular cada um dos próximos passos. O seu foco, todavia, estará em demonstrar a eficácia do produto.
Para outros, o mercado não podia estar mais vibrante. Amanda Whitamore, senior Marketing Manager na Hive Power, uma startup suíça, diz que é “perverso”, mas que o atual contexto geopolítico e económico tem um impacto positivo em empresas como a sua, que operam na área da gestão de energias renováveis. É como “vender máscaras no início da pandemia”, diz, sublinhando que a crise energética na Europa está a atrair muitas empresas de energia.
Os investidores não vão a lado nenhum – mas se forem, há outras formas de financiamento
Astghik Zakharyan, Country Manager na SIA – Startup Investor Accelerator, uma acelaradora que forma investidores, tem uma visão mais otimista: “Não vejo uma crise, ainda”.
“As coisas mudaram desde a pandemia, quando houve uma maior digitalização por parte dos negócios. Agora a situação geopolítica está a afetar algumas áreas, mas as pessoas com quem trabalhamos são early stage investors e não vejo o panorama a mudar com a guerra ou com a pandemia. As empresas continuam a precisar de soluções, a inovação não pára”, diz, explicando que a descida no investimento está a ser mais sentida nas empresas diretamente associadas às gigantes tecnológicas, que sofreram maiores desvalorizações.
Nas pequenas empresas, nas startups que estão a começar, diz, “não vejo as suas avaliações a mudarem muito”. No próximo ano acredita que essas mesmas valorizações “não vão ser loucas”, mas vão ser “razoáveis”, sublinha, acrescentando que a SIA organiza de seis em seis semanas competições e que tanto startups como investidores “continuam a aparecer”, algo que a faz acreditar na resiliência do ecossistema.
O tema foi motivo de várias talks, uma delas para fazer precisamente o ponto de situação na Europa do ponto de vista dos investidores. Ali, Pippa Lamb, da Sweet Capital, admitiu que “as avaliações foram atingidas” negativamente pelo cenário económico, mas que o Velho Continente continua a oferecer “uma série de vantagens estruturais”, ou não fossem as várias startups de sucesso aqui nascidas nos últimos 10 anos prova disso mesmo. “As venture capital estão apenas a subir o nível, mas continuam preparadas para pagar aos melhores founders”, diz.
Para Carlos Eduardo Espinal, da Seedcamp, este é um período de teste para os fundadores de startups, cuja arte não se limita a “saber gerir o dinheiro”, sendo também importante “gerir o capital de fé”.
“Os fundadores das startups têm de conseguir fazer as equipas acreditarem, porque as pessoas vão estar ansiosas, não só pelo aumento do custo de vida nos próximos meses, mas também em relação à estabilidade do emprego. Há um lado humano grande para encarar este período”, afirma.
Já Itxaso de Palacio, da Notion Capital, olhou para este período como um momento de oportunidade, reiterando que “as boas empresas vão continuar a receber investimento”.
É importante sublinhar que não é absolutamente necessário que haja uma venture capital a investir numa startup para que esta consiga crescer. Prova disso é o relatório divulgado pela Google Cloud, o fundo Atomico e a Dealroom.co sobre as startups da zona central do leste europeu e que demonstra que quase um quarto dos Unicórnios nascidos na região não teve investimentos de venture capital.
Estas empresas bootstrapped nascem e crescem de capitais próprios e financiam-se através dos clientes que vão conseguindo angariar.
O relatório divulgado mostra mesmo que esta zona da Europa, entre 2020 e 2022, num período de absoluta incerteza, onde se viveu uma pandemia e agora se combate uma guerra, é um verdadeiro exemplo de resiliência, não só pelas empresas que conseguiram crescer ‘sozinhas’ , mas pela forma como, ainda que perante condições pouco favoráveis, foi possível atrair investimento e passar de 2,5 mil milhões de investimentos para 5,3 mil milhões.
No que toca às diferentes formas de financiamento disponíveis, é valiosa a perspetiva de Daniela Braga, fundadora e CEO da Defined.ai, uma startup na área do reconhecimento de voz, texto e imagem, considerada uma das “100 empresas mais promissoras na área de inteligência artificial do mundo”, que volta a colocar a banca, esse parceiro que parece quase pré-histórico, ao lado do mundo da inovação.
“Se eu estivesse a começar, seria super difícil ir a capital. Toda a gente está a ver, em tech, 50% a 100% de desvalorização da empresa. É a pior altura para levantar capital porque se os investidores estão aos saldos, como eu digo, as valorizações estão a cair a pique. É preciso aguentar o melhor possível, não é a melhor altura para levantar dinheiro. Têm de se criar alternativas. Uma das alternativas é fazer parcerias estratégicas, porque estamos todos no mesmo barco, e o outro é contrair empréstimos bancários”.
“As crises são sempre momentos de oportunidade”
Rui Falcão, presidente COREangels, um grupo de investidores sediado em Portugal, olha para o atual contexto económico como algo que afeta o “encorajamento de pessoas e de atração de novas pessoas para investir em startups”, mas defende que esta área de investimento é menos afetada que outras.
“Há um espírito empreendedor nas startups que faz com que muitas das melhores startups que existem tenham aparecido, precisamente, em momentos de crise. Muitos dos bons investimentos que se fazem têm surgido precisamente nessa altura. Entre as possibilidades de investimento alternativo que temos, como investir na bolsa, com as dificuldades que tem, investir na criptomoeda, também com os problemas que tem, a opção de investir em imobiliário, que é muito caro… Agora é uma excelente oportunidade para investir nas melhores startups”, sublinha.
Rui afirma que as “startups que resistem à crise são também startups mais resilientes”, o que para um investidor se traduz em confiança: “significa que essas startups são aquelas que vão crescer e que vão ser as grandes empresas” do futuro.
“As crises são sempre momentos de oportunidades e, tal acontece noutras alturas, vão continuar a aparecer startups, porque estas nascem para resolver problemas. Quanto maior é o problema para resolver, maior é a possibilidade de a startup ter um grande negócio. A primeira pergunta que eu, enquanto investidor, faço é: qual é o problema que tu resolves? Se nós neste momento temos grande problemas de energia, de abastecimento das cidades, de mobilidade, do clima, etc., significa que há possibilidades novas e que se calhar temos que inventar novas formas de fazer coisas para que as startups possam, no fundo, dar solução aos grandes problemas da humanidade”, explica.
Para o presidente da COREangels, neste momento é essencial que haja “um equilíbrio entre o curto prazo e o médio/longo prazo”. “Tu não tens futuro se não tiveres presente, portanto é preciso aguentar o presente, tentar gastar menos dinheiro, percebendo a realidade da crise e encontrando alternativas para aguentar o curto prazo, mas nunca hipotecar o futuro, o futuro é que faz os empreendedores correr”, diz.
Correr no campo da incerteza não é fácil, muito menos será quando as regras do jogo se alteram. Apesar dos venture capitalists afirmarem que vão continuar a investir, os números e os testemunho de empreendedores traduzem uma mudança de atitude. Sim, vai continuar a haver dinheiro, sim, os empreendedores continuam otimistas, sim, os dois dois lados são realistas, sim, o passado já mostrou que um período de crise pode ser propício a oportunidades, com empresas como a Uber ou o Instagram a surgirem na sequência da crise mundial de 2008. Mas quantos fundadores vão conseguir viver na sombra dos tempos em que nasciam Unicórnios?