Vila Nova de Gaia. 31 mil alunos, 9000 computadores em falta e uma ideia para resolver o problema à escala nacional
É em tempos como os que vivemos que percebemos como a estatística pode com a informação certa dar-nos uma perceção distorcida de alguns problemas. Têm sido semanas a tentar perceber o que as curvas nos dizem no que respeita à progressão e contenção da covid-19 e a necessidade de perceber o que nos dizem os números não se esgota aí. A educação é outra das áreas onde precisamos de interpretar o que os números nos dizem.
Senão vejamos: de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), no ano passado, 80,9% dos agregados familiares tinham acesso a internet em casa, sendo que nas famílias com filhos até aos 15 anos a percentagem subia para 94,5%.
Ou seja, e 5% dos estudantes com menos de 15 anos viviam em casas sem Internet. 5% em 100% não é uma percentagem que assuste. 5% numa realidade como a atual significa que, no mínimo, há 50 mil estudantes – só no ensino básico – sem acesso à internet.
Com o fecho das escolas, agrupamentos escolares, autarquias, associações de pais, de professores e o Ministério da Educação perceberam que era necessário ter informação sobre as carências de equipamento informático e de acesso – uma ideia que ficou reforçada com a decisão de manter o terceiro período do ano letivo em ensino às distância para a maior parte dos alunos.
Entre as várias respostas, nomeadamente na sociedade civil com projetos como Student Keep, as autarquias estiveram na linha da frente face ás responsabilidades que têm ao nível do ensino público. Vila Nova de Gaia é uma das autarquias onde o problema da falta de computadores e de acesso tem maior expressão pela própria dimensão do concelho. "Temos, no total de alunos abrangidos pelo ensino público, 31 mil estudantes. No 1º. ciclo temos 11.000 e no pré-escolar, 4.000. Isso significa que estamos a falar de mais alunos do que muitos concelhos têm de habitantes", explica, nesta entrevista, o presidente da câmara, Eduardo Vítor Rodrigues. Que confessa que começaram cedo à procura de soluções, mesmo com a pressão que se fazia sentir nas primeiras semanas de abril no tema sanitário. "Para ser honesto, passámos todo o período das tradicionais férias da Páscoa já absolutamente convencidos de que não iria haver quadro para aulas presenciais no 3º trimestre".
Chegaram assim a uma primeira resposta que consistiu na entrega de 400 computadores e 1000 tablets a alunos mais carenciados. Um número manifestação insuficiente, já que a estimativas no concelho são de cerca de 9000 estudantes sem recursos para estudar m casa. E que é ainda maior se projetado à escala de uma área metropolitana com 600 mil alunos.
Uma dimensão que fez com o que o autarca de Gaia e presidente da Área Metropolitana do Porto apresentasse ao primeiro-ministro e ao ministro da Educação uma ideia: a de usar fundos do Portugal2020 para combate ao insucesso escolar para prevenir o insucesso escolar que poderá advir da falta de meios para estudar em casa. E, com esses fundos, fazer uma compra de equipamentos ao nível nacional, evitando situações de desequilíbrio no país. A ideia foi "bem aceite", mas falta Bruxelas dizer que sim. "Quando fizemos esta proposta estávamos no fim do mês de março e, para o arranque do 3º período, não teríamos tempo para que aquela máquina extraordinária que é a burocracia de Bruxelas se pronunciasse rapidamente. Agora, o que eu acredito é que no início do próximo ano letivo teremos com certeza condições para o fazer porque contra aquilo que é normal, há dinheiro".
Eduardo Vítor Rodrigues foi um dos entrevistados no The Next Big Idea desta semana na SIC Notícias.
Quando perceberam que a frente da educação, das escolas, vos ia exigir tomar algum tipo de iniciativa?
Eduardo Vítor Rodrigues – Para ser honesto, passámos todo o período das tradicionais férias da Páscoa já absolutamente convencidos de que não iria haver quadro para aulas presenciais no 3º trimestre. Os números apontavam para que isso acontecesse, as tendências eram claras. Portanto, não foi uma surpresa quando, no último dia do timing previsto, quinta-feira santa, foi anunciado que não teríamos aulas presenciais. O município já tinha preparado um plano de intervenção, dentro do quadro das nossas competências, que são em primeiro lugar o 1º. ciclo e o pré-escolar, mas não esquecendo que depois havia também trabalho a fazer nos 2º. e 3º. ciclos e no secundário, ou na parte do secundário que não ficasse contemplada por aulas presenciais. E, portanto, começámos a trabalhar nessa altura.
Quantos alunos, entre o pré-escolar, o ensino básico e o secundário, existem em Vila Nova de Gaia? De quantas escolas estamos a falar?
Esse começa por ser um problema, ao que depois se acrescenta outro: temos, no total de alunos abrangidos pelo ensino público, 31.000. No 1º. ciclo temos 11.000 e no pré-escolar, 4.000. Isso significa que estamos a falar de mais alunos do que muitos concelhos têm de habitantes.
O que é uma grande exigência…
E levanta um segundo problema: na verdade, o município tem também a responsabilidade de coordenar, porque é uma resposta municipal, um programa de apoio extra-curricular que abrange os alunos do 1º. ciclo e pré-escolar, num total de 15.000 alunos. É um programa que se chama “Gaia Aprende Mais” e que funciona das quatro e meia às sete e meia da tarde, com um conjunto de iniciativas que vão desde a introdução ao francês até ao judo ou ao karaté e é um programa estritamente municipal. Por isso sentimos uma necessidade ainda maior de intervenção, porque nesse grupo de alunos do “Gaia Aprende Mais” está um conjunto de 800 que são alunos com necessidades educativas especiais. E não quisemos, no período especial que estamos a viver, deixá-los “encostados” à espera de uma próxima oportunidade; se é um projeto inclusivo…
Já havia algum levantamento sobre quantas famílias, quantos alunos, qual a carência de equipamentos – computadores, tablets – caso fosse necessário estudar em casa?
No início do ano letivo, no momento das inscrições e matrículas e depois no arranque do ano letivo propriamente dito, é feito um diagnóstico sócio-económico, que tem o seu nível de falibilidade. Estamos a falar de um diagnóstico que questiona os alunos sobre a existência do equipamento em casa. Isso não é necessariamente a disponibilidade do equipamento para uma situação destas – o aluno pode ter equipamento em casa, que é dos pais e depois é usado apenas pontualmente e não com a assiduidade que se exige. Não vou dizer que não tivesse de ser atualizado, e quando foi atualizado deparámo-nos com duas questões: estamos a falar de computadores para alunos e com necessidades educativas especiais, sublinhar.
E qual foi a segunda questão?
É bom não esquecer que no levantamento que fizemos tivemos também, talvez para surpresa de muitos, não para mim, a necessidade de apoio, por parte dos professores. Não me parece uma coisa surpreendente, porque o município fornece todo o equipamento a todos os seus trabalhadores. Criou-se talvez a ideia de que o professor, por natureza, tem um computador portátil, que usa para a escola, ao contrário dos outros trabalhadores da Câmara que recebem o alicate comprado pelo município. Quando numa casa coexistem dois professores e só há um computador, percebemos que não há, de facto, disponibilidade do computador para, ao mesmo tempo, ambos estarem a trabalhar. Portanto, do lote de computadores disponibilizados disponibilizamos 50 para serem entregues, por empréstimo, a professores.
Do ponto de vista de números, conseguiram chegar a alguma conclusão sobre quantos precisariam?
Temos um número indicativo de 30% de necessidade em cima do número total de alunos, ou seja, precisaríamos de cerca de 9.000 computadores.
E na realidade, desses 9.000, qual é a capacidade de resposta, nesta fase?
Desses 9.000 temos três situações distintas: temos aqueles que não têm computador nem internet, temos aqueles que têm computador, mas não têm internet, que são poucos, e temos aqueles que têm internet mas não têm computador e que são mais porque têm normalmente internet fruto do pacote de televisão associado ao wi-fi e depois não têm é o computador.
O que fizemos foi criar respostas diferenciadas para estas situações. Não fazia sentido pagar um bundle de computador e internet se já existe internet em casa. As opções consistiram na compra de 400 computadores em bundle com hotspot e ligação à internet, 300 hotspot com ligação à internet, mas sem computador e 1000 tablets – bons tablets – que servem para o trabalho em casa, sobretudo o trabalho que diz respeito ao acesso à internet para utilização de plataformas.
Neste 3º trimestre é garantido que as aulas serão em casa para uma boa parte da população estudantil, mas não sabemos o que nos reserva o próximo ano letivo. O que significa que essas necessidades que foram identificadas, mesmo de uma forma faseada, terão de ter resposta. Como está a pensar fazer?
Para já, cobrimos aquilo que era absolutamente fundamental nesta fase. Infelizmente a escala do município em termos demográficos não corresponde necessariamente àquilo que é a escala financeira. Tive oportunidade de propor, quer ao senhor ministro e ao senhor primeiro-ministro, quer como presidente da câmara de Gaia quer como presidente da área metropolitana, uma solução que me parecia inteligente.
Não ignoro que não é fácil, de repente, ir ao mercado e comprar milhares de computadores. É evidente que isso não se faz de um dia para o outro, ainda para mais quando tivemos este processo covid-19 a acontecer na China e, portanto, muito do hardware que vem de lá esteve bloqueado este tempo todo. Mas julgo que é fácil de perceber que, no início do próximo ano letivo, se fizermos o trabalho de casa, temos um instrumento financeiro que nos vai ajudar a garantir um stock de material informático nas escolas, com muita facilidade e diria até sem nenhum tipo de consequências do ponto de vista financeiro para o orçamento de estado. Porque há, neste momento, uma linha de financiamento para o combate ao insucesso escolar que tem uma taxa de utilização, de execução, na ordem dos 30%.
Ora, 30% é uma taxa de execução de um programa que acabará, no fim do quadro comunitário que, como sabe, acaba no final de 2020, depois com o adiamento suplementar de um ano, ano e meio.
Como é que vê essa implementação?
Temos aqui a possibilidade, não a reboque do combate ao insucesso escolar mas, mais importante de tudo, a reboque da prevenção do insucesso escolar e da universalização do acesso às plataformas eletrónicas, à internet, etc, podermos fazer um trabalho de financiamento, por essa linha, que nos ajudasse e que ajudasse as próprias escolas. É bom dizer que estamos a incidir muito no hardware, mas em muitas escolas do país, infelizmente, o software é muito limitado e o seu licenciamento é tão limitado como o software. Portanto, também é bom que se perceba que vamos ter de ter aqui (no software) uma atuação, mais dia menos dia, Sob pena de estarmos todos iludidos com os computadores e depois os computadores chegam ao agrupamento e não há software para lá colocar ou, pelo menos não há software licenciado para lá colocar.
Qual foi a resposta do Governo à sua proposta?
A resposta foi imediatamente favorável. O senhor ministro da Educação e o senhor primeiro-ministro olharam para isto com grande interesse.
Portanto, vai avançar?
Eu acredito que sim. É preciso também dizer que, se não avançou de imediato, é porque nem o primeiro-ministro tem poder para alterar os regulamentos sem autorização da Bruxelas. Quando fizemos esta proposta estávamos no fim do mês de março e, para o arranque do 3º período, não teríamos tempo para que aquela máquina extraordinária que é a burocracia de Bruxelas se pronunciasse rapidamente. Agora, o que eu acredito é que no início do próximo ano letivo teremos com certeza condições para o fazer porque contra aquilo que é normal, há dinheiro. Precisamos de ajustar apenas o regulamento e isso está na nossa mão e na mão da negociação com Bruxelas – e faz todo o sentido que assim aconteça. É muito importante que se reconheça que não estamos apenas a falar de um processo que diga respeito às famílias mais pobres. Estamos também a falar de um processo que diz respeito a muita gente da classe média, média-média e média-baixa, que nas estatísticas de poder de compra e de rendimentos não está no nível de pobreza que permite aceder a todos os apoios. Está num nível que é ligeiramente superior àquela que é a linha da pobreza, dos apoios sociais, e qualquer perda de rendimento a faz tombar na franja seguinte e que necessita tanto como aqueles que aparecem como os mais pobres. A classe média e a nossa classe média, em Portugal, está em muitos casos e em muito volume, muito próxima daquilo que é o limiar de pobreza. Às vezes estamos a falar de diferenças de 100 euros ou de 150 euros que num processo de lay-off se desvanecem. Por isso tivemos muita cautela com os agrupamentos, em conceber este programa não apenas para aqueles que apresentam no início do ano letivo uma condição que lhes permite aceder imediatamente a todos os apoios sociais, e que os têm, mas também àqueles que foram vítimas recentemente, há quinze dias ou três semanas, de um processo de perda rápida e brutal de rendimentos que de repente os fez cair na estrutura. Sob pena de, se não tivermos esta atenção, termos classes médias rapidamente a transformar-se em classes pobres mas sem nenhum tipo de acesso aos apoios sociais porque só mais tarde, fazendo prova por condição de recursos, vêm a receber algum tipo de apoio que nunca é retroativo.
Do ponto de vista da capacidade de resposta da sociedade civil, que espera que haja algum tipo de colaboração?
Por muito que nos tenhamos esforçado – nós, os agrupamentos, as próprias juntas de freguesia – esse é um ponto a que os empresários e os eventuais doadores chegaram mais tarde. E porquê? Porque durante as primeiras semanas todo o esforço de doação foi posto em cima do hospital, por razões que se percebem. Só neste momento é que se começou a ver que havia muito interesse e muita utilidade no envolvimento destes atores neste processo, que as vezes é de empréstimo, outras vezes é mesmo de doação. E, portanto, fazer disto um processo de envolvimento da comunidade. Eu tenho de dizer que me sinto muito orgulhoso de Vila Nova de Gaia. A disponibilidade tem sido enorme. Temos tido em múltiplos agrupamentos, em empresas locais – não estamos a falar de grandes empresas, o que também diz muito de tudo isto. Empresas locais, que vivem até com algumas dificuldades, com lay-off, mas que se disponibilizam neste processo coletivo, quase comunitário, a participar, a disponibilizar os seus próprios computadores, estando em lay-off, mas sobretudo a adquirir e a colocar nas escolas, como doação definitiva à escola.
O número que falou em relação a Vila Nova de Gaia e atendendo à sua dupla função como presidente da Área Metropolitana, é espelhável na realidade da área metropolitana? Há 30% estimados de famílias que podem não ter acesso a computador em casa?
Pelos contactos que tenho tido com os colegas da área metropolitana, e não só, infelizmente, a situação tende a agravar-se à medida que saímos desta malha urbana mais central. É verdade que em municípios como Porto, Gaia, Matosinhos há um poder de compra mais elevado. Também é verdade que existem franjas de pobreza associadas a urbanizações sociais ou outras, mas é sobretudo verdade que quando chegamos à segunda ou terceira malha do anel metropolitano e percebemos a realidade sócio-económica, a situação apresenta números generalizadamente piores. Também é verdade que aí, temos municípios que, não tendo exatamente os mesmos recursos que Porto, Gaia ou Matosinhos, têm apesar de tudo, um contingente demográfico suficientemente baixo, nesta faixa etária, para com 200 ou 300 computadores resolverem o problema de toda a gente, coisa que é impensável fazer nas grandes cidades.
Para fechar este ponto dos números: na Área Metropolitana do Porto, falamos de quantos alunos, entre estes três níveis de ensino?
Na Área Metropolitana do Porto falamos de 17 municípios que vão desde o Porto, cidade, até Arouca correspondendo a dois distritos, do Porto e Aveiro, num total de alunos, no ensino público, superior a perto de 600 mil alunos.
Como vai ser este regresso à normalidade em Vila Nova de Gaia?
Nesta fase estamos muito focados na preparação das condições de entrada do 11º e 12º anos. Aí temos de garantir um conjunto de condições, não apenas as tecnológicas, mas também condições de segurança pessoal, porque admito que seja obrigatório usar máscara no transporte público, e muitos alunos e professores utilizam o transporte público. Depois, dentro da própria escola, haverá também medidas de segurança que têm de ser implementadas.
Relativamente ao concelho como um todo, estimo que no dia 4 possamos ter um início de abertura gradual de alguns serviços. Estou a referir-me ao comércio local, ao comércio de bairro, não ainda às grandes superfícies. Mas há condições para impor regras para circulação e para abertura deste tipo comércio local, o que tem de estar associado ao retorno à normalidade. Portanto, o que imagino é que no dia 4 arranquemos, no município e se calhar pelo resto do país, com um conjunto destes serviços a funcionar e que isto seja uma forma de nos aperfeiçoarmos nas novas relações que vamos ter, nos novos comportamentos que vamos ter.
Este progressivo retorno tem um de dois caminhos: ou vai ser um progressivo retorno que, por etapas, nos vai levar o mais possível próximo daquilo que era a nossa normalidade, é o que desejo; ou vai ser um retorno que vai ter, nos quinze dias ou três semanas seguintes, um revés se as pessoas acharem que já está tudo ultrapassado e que já podem interagir normalmente. O que espero é que fique claro que este retorno vai ter de ser feito com muita cautela, muita consciência de cada um, individual, e ao mesmo tempo com imposição de medidas rigorosas para que se perceba que não é um aliviar de condições para um retorno a uma alegada normalidade. Acho que vai ser muito difícil, nos próximos muitos meses, podermos falar de retorno à normalidade.
Quais são as principais frentes de atuação em Vila Nova de Gaia?
Para que isto aconteça, o município está em várias frentes, desde a utilização deste período de menor intensidade de circulação no espaço público para fazer a desinfeção do espaço público (jardins, ruas passeios) até a própria manutenção dos nossos equipamentos que venham a ser usados de forma diferenciada. Dou apenas um exemplo, que não sendo estritamente nosso, é dos seis municípios da malha central da Área Metropolitana, que são os autocarros da STCP. Neste momento estamos a cabinar os autocarros de forma a que o motorista fique inserido numa célula não tendo contacto com os utentes e dessa forma protegendo o motorista, ainda que entenda, e será isso que vai acontecer seguramente, que os autocarros terão de ter uma percentagem que não a atual, que é apenas de um terço, mas uma percentagem condicionada de acesso ao próprio serviço. Há muitas alterações a fazer: a colocação de gel ou máscaras em máquinas de vending nas grandes zonas de paragens de autocarros ou do metro vai ser uma inevitabilidade, porque de certeza que se vai circular no transporte público com máscara. Portanto, há muita coisa a fazer e isto são apenas alguns exemplos. Julgo que nunca como hoje, os municípios foram chamados a diversificar tanto sua área intervenção.
Acho também que nunca como agora os municípios mostraram tanto essa capacidade de adaptação e até de empenho, tantas vezes posta em causa quando se falava da descentralização, para que as coisas corressem o melhor possível.
O primeiro-ministro numa reunião, por videoconferência, comigo enquanto presidente da Área Metropolitana do Porto, e com o presidente da Câmara do Porto e com o presidente da Câmara de Lisboa, também presidente da Área Metropolitana de Lisboa, e os ministros do Ambiente, dos Transportes, das Infraestruturas e Habitação, comentava: “Preciso de ouvir os autarcas ou aqueles que representam estruturas das autarquias, porque é diferente perceber a realidade a partir da visão mais técnica, às vezes muito tecnocrata, ou percebê-la partir da voz dos próprios que levantam problemas que às vezes são difíceis de pensar".
Por exemplo, quando se tratava de perceber a percentagem de ocupação que cada autocarro pode ter, é preciso não esquecer que abrindo o comércio local e as aulas, como se perspetiva abrir, se formos muito ciosos na taxa de ocupação dos autocarros, não vamos ter as pessoas dentro dos autocarros mas vamos ter aglomerações dentro dos abrigos, portanto é preciso reforçar as frequências para que os autocarros circulem mais assiduamente e para que não se acumulem pessoas nos abrigos. Na verdade, é a mesma coisa, ou pior até, ter pessoas nos abrigos ou dentro dos autocarros a fazer um pequeno percurso. Estas questões, muitas vezes escapam ao dia-a-dia.
Enquanto presidente de câmara e enquanto cidadão, como foi esta mudança? Como se adaptou?
Mais importante que tudo foi adaptar-me emocionalmente. Porque uma coisa é gerir o município naquela lógica da gestão tradicional. Outra coisa foi começar a perceber que, afinal, quando chegamos a um momento destes, temos de dar todos as mãos. Tivemos de nos envolver com lares que são privados, com IPSS que, sendo parceiros são também privados. Lembro que, no caso de Vila Nova de Gaia, temos dentro dos lares de idosos mais de 2.500 pessoas, em 59 lares. É, mais uma vez, mais do que muitos concelhos têm de habitantes. Por exemplo, a problemática dos testes nos Lares tem sido absolutamente estonteante, com muitas nuances. Acho que tenho aprendido muito, mas, sinceramente, o que peço a mim próprio é capacidade de resistência e de resistência emocional. Porque os problemas com que nos confrontamos muitas vezes, como o abandono do idoso no hospital, são problemas que nos interpelam numa lógica que já não é de gestão apenas.
Depois é trabalhar. Tem sido extraordinário. Sem nenhum tipo de exageros, tenho de dizer, e por natureza já sou um crente na natureza humana. Nunca vi as pessoas que, por um lado, não se podem cumprimentar, beijar, como tradicionalmente, mas que nesta fase estão tão imbuídas dum espírito solidário, de empenho, às vezes até de alguma irresponsabilidade. Como um senhor de idade que se senta sempre a jogar dominó em frente à câmara; pedi-lhe para ir para casa e responde “Oh, presidente, eu não sou como vocês, do tempo dos iogurtes. Eu sou um resistente. Já passei muita fome!” E nós ficámos sem saber o que dizer. Também desse ponto de vista tem sido extraordinário perceber como as pessoas voltaram a ganhar o espírito de comunidade.
Escrevi num artigo, há dias, em que dizia que iniciámos um processo de desglobalização. [Acabou] Aquilo que para nós era estar hoje aqui e passados uns dias estar noutra ponta qualquer do globo ou valorizar tudo o que é de fora e tantas vezes desvalorizar o que é nosso. Acho que vamos passar por um tempo de reforço dos nossos laços, das nossas redes de sociabilidade e daquilo que é nosso, daquilo que é a nossa cidade, o nosso país. Acho que esse processo de desglobalização está a acontecer e vai mesmo reforçar-se.