Não há pergunta que irrite mais qualquer profissional sério na sua área do que “o que é que está a dar”. A pergunta colocada desta forma – ou em versões um pouco mais sofisticadas – tem o condão de remeter para aquele oportunismo que tornou ricos homens e mulheres ao longo da história, mas que irrita os pioneiros, visionários e, no limite, românticos de qualquer projeto em que se acredita verdadeiramente.
No último ano, o que “está a dar” é a inteligência artificial. Desculpem pioneiros, visionários ou românticos, está escrito e não é nas estrelas, mas na esmagadora maioria dos press releases que chegam à imprensa e nos pitch decks que chegam aos investidores. Daqui a 17 dias, a 30 de novembro, faz um ano que o ChatGPT foi apresentado ao mundo e daí para a frente fundadores, spin doctors e os próprios investidores cumpriram uma espécie de regra não escrita que diz que se é para ter impacto, tem de ter inteligência artificial.
Não podemos levar a mal. Nos primeiros cinco dias de “abertura ao público” em 2022, o ChatGPT conquistou um milhão de utilizadores – nunca uma tecnologia tinha tido uma adesão tão rápida (Facebook demorou 10 meses a ter um milhão, Instagram demorou dois meses e meio). Um ano depois tem mais de 180 milhões de utilizadores. A máquina deixou de ser ameaçadora e passou a ser boa companheira de estudantes, profissionais e simples curiosos.
O que explica que a palavra mágica de 2023 para qualquer negócio – e sobretudo para aqueles que procuram investidores – tenha sido “inteligência artificial”. Se há 10 anos em Portugal até as mercearias gourmet passaram a ser startups, em 2023 inteligência artificial tornou-se uma espécie de “abracadabra” no mundo dos negócios. Num momento em que a maior parte das startups atravessa o deserto à procura de investimento, os mais bem-sucedidos na travessia têm IA no cognome.
Então porque não fazê-lo? Ou, caso a primeira tenha resposta, como fazê-lo?
Comecemos pela razão pela qual a maior parte das startups considera tentador associar IA ao seu descritivo. Aproveitando o convite da Web Summit para moderar uma conferência sobre como é que as startups podem competir no mercado de GenAI fui à procura das mais bem-sucedidas rondas de investimento na Europa em 2023:
- Mistral, uma startup francesa fundada por ex-quadros da Meta e da DeepMind, levantou um investimento de 105 milhões de euros poucas semanas após o lançamento, em junho de 2023.
- Poolside, uma startup fundada pelo ex-CTO da Github levantou 126 milhões de euros, em agosto de 2023.
- Adaptive, uma startup sediada em Amesterdão e fundada por engenheiros e investigadores oriundos da Amazon e da francesa Hugging Face levantou uns mais modestos 20 milhões de euros (isto quando comparados com os números anteriores).
- A campeã europeia foi a alemã Aleph Alpha que propõe ser uma alternativa à OpenAI, empresa-mãe do ChatGPT, e que levantou 500 milhões de dólares.
Olhando para estes números, é fácil concluir que há dinheiro em cima da mesa para investir em projetos de IA, mas, para os mais atentos, também lá está a resposta para que tipo de coisas “está a dar”. É que tão revelador quanto estes números são todos os outros projetos de IA que invadiram o mercado nos últimos 12 meses e os que mais virão e que não conseguirão financiamento – ou o conseguirão numa escala muito inferior.
Não deixa de ser interessante ver as ofertas e não há uma semana que não sejamos surpreendidos com mais uma ideia de como usar democraticamente a inteligência artificial. Por exemplo, para responder a propostas de emprego, um calvário que ninguém adora percorrer, nomeadamente os mais jovens à entrada do mercado de trabalho. LazyApply é, como o nome indica, uma resposta suportada em IA que, por 250 dólares/ano, responde a ofertas no LinkedIn e ZipRecruiter ajustadas aos parâmetros de quem procura. E tem concorrência, a Sonara faz o mesmo por 80 dólares por mês e a Massive por 50 dólares/mês.
Será a LazyApply a empresa que nos lembraremos de falar daqui a 30 anos quando recordarmos os primórdios da inteligência artificial enquanto “produto” de mercado? Vou arriscar que não da mesma forma que a maior parte dos internautas associe PowWow aos primeiros anos da Internet comercial (google it aqui ou, se preferirem, consultem o ChatGPT como fiz).
Se o ChatGPT foi o momento iPhone da Inteligência Artificial, a maioria dos projetos que chegaram ao mercado em 2022/23 são uma espécie de “Apps” numa recém-criada App Store assente em modelos de linguagem natural e machine learning. Ou seja, isto é ainda tão 2008 e, como hoje também sabemos, as apps que se tornaram grandes negócios são as que não se ficaram pela last mile.
Outra coisa que as maiores rondas de investimento nos dizem é que os projetos de maior potencial não são para todos, mas para quem já traz currículo. Não é por acaso que são pessoas com passado em empresas como Meta, DeepMind ou Amazon a fundar startups que arrecadam as maiores rondas. Tem a ver com experiência, com tentativa e erro, com capacidade económica para suportar a tentativa e erro – tudo antes de entrar no fino gelo de fundar uma startup.
Quer isso dizer que não há espaço para projetos de que não reza a história?
Nada disso. Sempre existiram e sempre existirão e, com alguma probabilidade, são ótimos sacos de boxe dos projetos que resistem ao tempo. A pergunta é outra e é sobre a motivação de quem está atualmente a investir talento, conhecimento e esforço numa startup.
Se efetivamente o valor está na utilização de inteligência artificial, tem tudo a ganhar em apontar para a lua em vez de olhar para o dedo – porque estamos apenas no princípio de uma revolução que vai mudar a humanidade e nos vai exigir como humanos mais do que nunca. Se se trata apenas de uma manobra de marketing para ganhos rápidos, é possível que possa correr bem no curto prazo e muito possível que no médio prazo outra coisa qualquer esteja “a dar”. O que torna esta equação menos óbvia do que um negócio de fazer Hambúrgueres – um produto fiável que nunca passa de moda – é que a inteligência artificial nos vai colocar questões como humanos mais do que como consumidores. Não é só mercado a funcionar e, precisamente por isso, precisamos de pioneiros, visionários e indiscutivelmente românticos.