França e startups não era até há bem pouco tempo a combinação mais óbvia. França é moda, França é vinhos e croissants, França é arte e luxo, mas inovação não estava garantidamente na lista dos atributos mais óbvios do país. Mas as coisas têm mudado e parte dessa mudança está a ser feita à boleia da tecnologia de Inteligência Artificial (IA) que está a atravessar de arrastão todo o ecossistema empresarial.
Há menos de um mês, Paris reforçou este posicionamento do país ao ser anunciada a parceria entre Meta, Hugging Face (primeiro unicórnio francês) e Scaleway para lançar na Station F (um dos principais espaços de incubação e aceleração na Europa) um programa de open source para projetos de IA. O anúncio surge quase no final de um ano que correu francamente bem para as aspirações francesas. Uma das maiores rondas de investimento, num ano seco de capital, foi precisamente a de uma startup francesa de IA, a Mistral, que levantou 105 milhões de euros. Outras startups, como a Photoroom (que se tornou um fenómeno de sucesso e de receitas) ou a Clipdrop (adquirida pela Stability AI) ajudaram ao momento. A somar houve ainda o anúncio pela Poolside, a start-up americana que protagonizou uma das maiores rondas de investimento em 2023 (126 milhões de euros), de que iria mudar a sua sede para Paris.
E, claro, o governo francês turbinou os acontecimentos com uma campanha que dizia simplesmente “Make it ironic. Choose France”.
O caminho tem estado a ser feito passo a passo, mas a um passo acelerado. Em maio, o nome de que todos falam por estes dias, Sam Altman, esteve num evento na Station F e teve uma visita guiada pelo ecossistema francês de startups. A Stripe, uma das fintech mais relevantes no panorama mundial (fundada por irlandeses, sediada em São Francisco), escolheu Paris para o seu evento anual e, mais recentemente, um meet-up sobre IA juntou cerca de 2000 participantes.
Um dos rostos deste movimento para colocar França no pódio da inovação é Yann Le Cun, responsável pela área de inteligência artificial na Meta, mas está bem rodeado de outros nomes como é o caso dos fundadores da Hugging Face e do próprio apoio da Microsoft a programas que decorrem em Paris.
E isto seria só um tour pela paisagem em mudança da inovação em França se não houvesse – ou não pudesse existir – um interesse direto de Portugal no tema. Entre os mais distraídos que veem a inteligência artificial como mais uma moda e os mais oportunistas que querem colocar inteligência artificial em tudo o que lhes soa a receita em caixa, há uma realidade concreta que é o facto de esta ser uma revolução tecnológica dificilmente equiparável a qualquer outra.
Larry Summers, o ex-secretário de Estado americano do Tesouro, agora membro da nova comissão executiva da OpenAI depois da novela da última semana, declarou que o “ChatGPT era a proposta tecnológica mais importante desde a roda ou o fogo”. Será demais? Se pensarmos “só” no ChatGPT, talvez, mas se estendermos a afirmação a tudo o que está associado à evolução da inteligência artificial, provavelmente não.
Como é que Portugal se pode posicionar no tabuleiro de xadrez mundial de inovação, nomeadamente com o foco na Inteligência Artificial? Vale a pena fazer algumas considerações prévias, nomeadamente por comparação com a estratégia que está a ser seguida por França.
França é uma economia significativamente mais robusta que a portuguesa. Em 2022, o PIB por habitante em França era de 38.902 euros e em Portugal ficou por metade, 19.310 euros. Ajuda sempre concretizar números grandes em realidades dimensionáveis por cada um de nós.
Entre os mais distraídos que veem a inteligência artificial como mais uma moda e os mais oportunistas que querem colocar inteligência artificial em tudo o que lhes soa a receita em caixa, há uma realidade concreta que é o facto de esta ser uma revolução tecnológica dificilmente equiparável a qualquer outra.
Ao nível da inovação, usando como métrica o número de startups que alcançaram valorizações superiores a mil milhões de dólares – os famosos unicórnios – França ultrapassou já a meta definida pelo governo francês, em 2019, que era de 25 unicórnios em 2025. Atualmente são já 36 (só em 2022 houve sete startups a obter esse selo) e é de recordar que, em 2017, havia apenas dois unicórnios em França. E, face a esta evolução, o presidente Macron já arriscou dizer, na conferência Viva Tech de 2022, que em 2030 o país deverá ter 100 unicórnios, 25 dos quais espera que sejam nas energias verdes.
A Inteligência Artificial é o motor da próxima era dourada de inovação e é para aí que França está a olhar – e a atuar – agora. E, sim, faz sentido discutir se Portugal tem capacidade de entrar nesta disputa pelo hub “mais sexy” da Europa na tecnologia que vai, provavelmente, moldar e mudar a humanidade nas próximas décadas. Na área da engenharia, segundo o Eurostat, Portugal forma cerca de 90 mil estudantes todos os anos. Não basta engenharia, é preciso matemática, física, química, biologia, porque se há certeza possível sobre esta nova revolução tecnológica é que exige integração de conhecimento – incluindo as tão esquecidas humanidades (mas voltaremos a este tema noutro artigo).
Este fim de semana tivemos duas notícias, uma boa e outra má, no que respeita a estas ambições e possibilidades. A boa foi anunciada no primeiro DemoDay do Center for Responsible AI, onde foram apresentados 10 novos produtos suportados por inteligência artificial num trabalho conjunto entre academia, startups e grandes empresas. O Center for Responsible AI anunciou que fez uma parceria com a Startup Lisboa e a Startup Portugal para dinamizar em Lisboa um hub de inteligência artificial – na prática, o que Paris tem vindo a fazer em parceria com a Station F e com bons resultados. É uma boa notícia.
A má foi o anúncio por parte da ministra da Ciência e Ensino Superior do cancelamento dos protocolos de cooperação com as universidades norte-americanas de Carnegie Mellon, MIT e Austin-Texas. Foram protocolos lançados em 2006 pelo então ministro Mariano Gago para promover a internacionalização da ciência e da tecnologia portuguesas, nomeadamente através da formação de doutorandos e da investigação. A razão invocada é que as universidades portuguesas, representadas no Conselho de Reitores, consideram que é dinheiro que faz falta às próprias instituições que estão sub-financiadas na investigação e na ciência. A decisão foi já contestada por várias vozes, nomeadamente Nuno Sebastião, CEO do unicórnio português Feedzai, e pelo próprio ex-ministro da Ciência e Ensino Superior, Manuel Heitor. Este é um tema que merece uma análise mais detalhada, não apenas sobre os resultados destas parcerias e de como em 20 anos se mudou a relação entre a academia e a economia, mas também sobre uma cultura diferente, aberta a várias formas de pensamento e não indexada a uma estrutura interna de cada universidade ou de cada país.
As universidades e a investigação estarem sub-financiadas em Portugal é um problema que é necessário resolver. Mas, em matéria de conhecimento, científico ou outro, promover silos nunca foi um bom princípio. Numa altura em que temos pela frente uma revolução que é muito mais do que apenas tecnológica, é uma ideia ainda pior.