O impacto da Covid-19 nas indústrias criativas
Nos anos 60, o filósofo Raoul Vaneigem escreveu que “a vida ficou reduzida à economia do espaço”. Ele, provavelmente, não imaginou que esta frase seria mais verdadeira agora do que já o era na altura. Viver em espaços confinados, experienciar apenas uma pequena fração do que a vida deveria ser, sentir um medo constante — ou pior, aceitar este medo como a única maneira de manter intactos os nossos círculos sociais cada vez mais restritos. Esta nova realidade económica, a escassez de espaços e possibilidades, representam um grande desafio para todas as indústrias. No entanto, um setor em particular sentiu intensa e imediatamente o impacto do pânico geral disseminado pela pandemia: as indústrias criativas e expressões artísticas.
Estamos a falar da total paralisação de um setor que vive, essencialmente, da concentração de grupos de pessoas. Na era da Covid-19, esta é uma ação totalmente proibida — podemos fazer o que quer que seja, exceto estar junto de outras pessoas. Isto tem várias implicações: os museus estão fechados; bares e discotecas cancelaram toda a programação; os livros estão a lutar para saltar das prateleiras para as mesas de cabeceira, agora mais do que nunca; os teatros estão proibidos de ter espetadores; os cinemas são deixados ao abandono como complexos de apartamentos em cenários pós-apocalípticos. Toda uma indústria, uma indústria frágil e a viver do pão de cada dia, espetáculo a espetáculo, ficou sem qualquer rendimento. E, mesmo que os governos consigam arranjar formas de ajudar o setor a sobreviver a esta crise, como já está a acontecer, todas as formas de distribuição de conteúdo terão de ser repensadas.
Por ora, estamos a ver mais conteúdo no Netflix do que nunca e deixar a música de lado. Os músicos não dão concertos e vêem as royalties minguar — talvez seja por isso que Tom Morello, dos Rage Against the Machine, esteja a vender aulas de guitarra no Instagram. Não há torneios desportivos para ver. Ligas, associações, tours e campeonatos foram adiados ou cancelados por todo o mundo, com o intuito de manter os fãs em casa ou proteger os seus jogadores (e principais recursos de marketing). O próprio Ronaldo recusou voltar a Turim para continuar a treinar. Enquanto isso, os egamers estão a satisfazer a nossa sede de competição com jogos como FIFA, Fortnite e League of Legends — e, se calhar, o leitor já se iniciou no Twitch para poder participar ou assistir aos jogos virtuais.
Dançarinos, atores e praticantes de artes performáticas estão órfãos de palco e de locais para apresentar as suas obras. Técnicos e profissionais desta esfera não têm perspetivas de encontrar novas oportunidades de trabalho. A sociedade no geral, contudo, mudou o foco para os lives no Instagram e no Facebook de comediantes, músicos e profissionais de entretenimento, e encontra alegria ao reivindicar a descoberta de novas formas de se ser produtivo, quer seja a fazer pão, ou a participar em aulas online de ioga.
Os designers, videógrafos e copywriters (que desenvolvem conteúdos escritos) estão a ser esquecidos devido à crise económica iminente resultante da pandemia. Apesar de muitos empreendedores e empresas estarem a criar novas soluções para novos problemas, de forma a manterem-se relevantes, muitas vezes esquecem-se de que também precisam de maneiras eficazes de comunicar esses esforços. Seria aqui que estes profissionais de comunicação entravam na equação. Simultânea e quase ironicamente, a rede de anúncios do Facebook continua a apresentar altos níveis de procura.
Os museus estão fechados. Algumas fontes afirmam que museus nos EUA estão a perder 33 milhões de dólares todos os dias, tanto em bilheteira como em financiamento e mecenato, tendo também demitido inúmeros profissionais para mitigar perdas. Com tantas instituições culturais fechadas e paralisadas, a nossa atenção foi desviada para outros meios — principalmente para séries documentais sobre cartéis de tráfico de felinos com antecedentes criminais e psicologicamente abusivos. A indústria criativa está sob pressão e precisa urgentemente de soluções.
Os profissionais da indústria da música, músicos, técnicos, editoras, estúdios e distribuidoras enfrentam um novo desafio relativo à conversão monetária das suas produções, que têm no formato ao vivo a sua maior fonte de rendimento. Sem isso, restam plataformas de streaming e distribuição. O Spotify, o Deezer e plataformas semelhantes, contudo, registaram quedas no seu uso (apresentado uma maior procura, curiosa mas não surpreendente, de géneros de música infantil e clássica). As vendas digitais de música também caíram à medida que os estados de emergência alteraram o comportamento dos consumidores. Mesmo serviços como a Amazon e outras plataformas de comércio eletrónico anunciaram que sua prioridade seria a venda de bens essenciais, deixando discos e formatos físicos sem distribuição e compradores, exceto através de vendedores especializados. Os que continuam a recorrer ao stream, e que tendencialmente pintam os dias com listas curadas com base em humores e estados, ditos moods (uma tendência liderada pelo Spotify), têm preferido música relaxante em detrimento de outras expressões, diminuindo a diversidade do conteúdo transmitido e, consequentemente, o número de artistas, editoras, agências e distribuidoras que receberiam royalties.
Embora as indústrias criativas, em geral, possam estar prestes a assumir um grande papel na definição e comunicação de novos hábitos, artistas e geradores de conteúdo, pessoas cuja atividade sempre acrescentou novos significados ao nosso mundo e criou fugas, imaginárias e físicas, para as nossas rotinas, agora parecem estar presos a este aparentemente novo paradigma social.
Na luta pela sobrevivência
Obviamente, estão a surgir novas tendências, novos influencers, novos memes — um mundo conectado por fibra ótica é uma realidade em constante mudança. Enquanto algumas pessoas procuram novos propósitos para o seu conteúdo antigo, outras estão a adaptar as suas próprias criações, ou com exemplos de formas de distanciamento social. Não é de surpreender que o LA Times já tenha declarado o "Quarantine Pop" como novo género musical, com Cardi B a gritar "Coronavirus is coming to get’ya" (o Coronavirus vai apanhar-te). Este fenómeno abriu caminho para as contas de Tik Tok, rede social de origem chinesa em franco crescimento, e piadas recorrentes de Instagram gerarem novas de músicas sampladas (excertos de som manipulados e musicados).
Ainda olhamos para os artistas e expressões criativas na procura de alguma esperança imediata. Curiosamente, estas pessoas são, não raramente, menosprezadas. A nova experiência social é composta por ecrãs, janelas e telas; a arte e o design têm aqui um enorme papel, assim como um grande desafio, servindo de aproximador de pessoas, de exercício comunitário e como de codificador e descodificador destas experiências. Acima de tudo, nas artes dependerão, sempre, os pontos de referência que nos aproximam.
Os músicos e DJs estão a invadir os serviços de streaming e redes sociais, a cantar canções de esperança sem um modelo claro de como monetizar e reverter as restrições financeiras impostas pela pandemia. Desta forma, os promotores continuam a busca por novas formas rentabilizar estas possibilidades. Os técnicos de som e luz encontram-se em condições ainda piores, aparentemente sem meios para dinamizar e iniciar novas atividades com as habilidades que de dispõem. Em Portugal, o aparecimento de iniciativas como festivais online ou concertos no Instagram para ajudar quem está em quarentena não demoraram muito a aparecer, ainda que sem impacto para estes últimos. Para além disso, foram também criadas plataformas de transmissão online com o objetivo claro de arrecadar fundos para músicos. Esta é uma preocupação que ressoa um pouco em toda parte. A empresa de coworking The Rattle, por exemplo, está a doar todos os lucros para a iniciativa Help Musicians UK. Alguns promotores também estão a redirecionar o conteúdo dos seus negócios de uma situação in loco para soluções virtuais, procurando novas maneiras de financiar os seus esforços com playlists selecionadas, histórias inéditas da sua atividade, e não só, alimentadas por plataformas como o Patreon.
Os teatros estão a testar a transmissão ao vivo. O Teatro Nacional de São João do Porto tomou a dianteira ao transmitir em formato digital interpretações de peças modernas. Os livreiros e escritores também estão criar formas novas de aliviar estas pressões, como as editoras Antígona e Orfeu Negro fizeram com sua iniciativa “Adopta uma Livraria”, compartilhando 30% dos lucros das suas vendas online com livrarias independentes.
A indústria da moda foi, provavelmente e por via dos meios de que dispõe, a primeira a adaptar o seu modelo de negócios e a encontrar novas maneiras de permanecer relevante — escusado será dizer que a venda de toilettes de alta costura para se usar em casa ainda não está na lista de ideias potencialmente bem-sucedidas para os grandes grupos da indústria. Em toda a Europa, os trabalhadores têxteis focaram-se na produção de máscaras, com o intuito de responder a esta nova procura. Algumas marcas que estendem a sua oferta à produção de cosméticos dispuseram dos seus meios para apoiar no combate ao surto e começaram a produzir gel desinfetante. Estas são medidas de curto prazo que mantêm a relevância da indústria para um problema que, provavelmente, se estenderá a médio, ou longo prazo; mesmo assim, não apresentam uma solução económica, sendo que grande parte destes bens são doados. Esta nova realidade pode trazer um pouco de ar fresco necessário ao setor, mas a possível permanência ameaçadora dos hábitos da pandemia parece suscitar novas questões sobre os modelos que cada setor pode implementar.
Os artistas também estão a utilizar novos modelos, criando programas improvisados no Instagram que se assemelham programas de TV, gerando conteúdo televisivo específico para os nossos dispositivos portáteis. Em Portugal, o ator, comediante e argumentista Bruno Nogueira tem vindo a colaborar com a sua comunidade de artistas e contactos imediatos, criando um movimento nada menos do que fenomenal. Com convidados tão reconhecidos quanto Maria João Pires, Nuno Markl e Albano Jerónimo, entre tantos artistas, Bruno Nogueira transmite via IG Lives (plataforma de transmissões em directo do Instagram) alguns momentos belos e irrepetíveis. Ouvir a interpretação de Maria João Pires de "Claire de Lune", peça de Claude Debussy, embeveceu muitos. Nuno Markl, durante uma conversa no directo de Bruno Nogueira, apelou aos seus insta-espetadores que seguissem uma Rádio AM a operar a partir do Polo Norte, surpreendendo o seu pequeno dono e apresentador com mais de 70 mil portugueses que responderam ao pedido. Bruno Nogueira reuniu um público leal de cerca de 70 mil pessoas que seguem, numa tentativa de aliviar as dores individuais provenientes do distanciamento social, as suas conversas noturnas e de tons ora sérios, ora muito caricatos, bem como os seus esforços artísticos.
Os autores e os comediantes estão, como se pode imaginar, longe de serem os únicos a alcançar o estatuto de influencers nas redes sociais. Ágata, um dos ícones maiores da canção romântica portuguesa, está a interpretar novas versões de karaoke das suas próprias músicas, introduzindo nas letras avisos e mensagens adaptadas à era pandémica. As consequências não se fizeram esperar, sendo, já, um formato repetido até à exaustão no Tik Tok, com os utilizadores a fazerem playback do seu clássico proto-feminista "Sozinha". Esta nova versão, claro, vive do seu apelo para se “estar sozinhos / para vencer este inimigo sozinhos / mais afastados, mais unidos, sozinhos”. Uma receita vencedora em tempos de aborrecimento e confinamento.
Os produtores de funk das favelas do Brasil também estão a divulgar novas faixas com instruções sobre como lavar as mãos, e alguns estão a aproveitar a oportunidade para partilhar informações relevantes sobre como fazer e lidar com o distanciamento social e o auto-isolamento. Há mesmo influencers a mostrar aos seus seguidores como os testes são feitos. A crise é, de facto, um combustível para a criatividade e não é a primeira vez que o testemunhamos, nem será a última.
Os museus também estão a considerar novas abordagens e a direcionar-se para tours online, exibindo a sua arte através de um ecrã. Não é o mesmo que sentir a textura viva de uma obra, mas o mais próximo que temos de apreciar a arte durante este período de quarentena auto-imposta. Enquanto novas soluções estão a ser ponderadas, a obtenção de rendimentos através destes formatos continua a ser o grande desafio. Com poucas esperanças de encontrar novos modelos comerciais, os pedidos de ajuda, de apoio e de procura de financiamento intensificam-se por todo o mundo.
O que poderia ser, como poderia ser
Nenhuma das soluções acima mencionadas é nova. Não o são para nós e não o são para os governos, que têm ouvido os artistas e criativos sem questionar o quão essenciais eles são para cada país. Muitas vezes esquecemo-nos de que a hegemonia cultural e económica caminham lado a lado. Muitas vezes esquecemo-nos de que a cultura é um dos principais veículos para o consumo, aproximando de nós as expressões culturais com as quais estamos mais familiarizados, seja um filme de Hollywood, uma banda de rock britânica, um diretor de cinema independente francês ou um escritor clássico russo.
Cientes disso mesmo, alguns governos estiveram à altura do desafio e esforçaram-se para apoiar o tecido cultural e criativo do país. O Arts Council do Reino Unido tem um fundo de apoio de 160 milhões de libras para as artes, reservando 20 milhões especificamente para trabalhadores independentes. A abordagem da Alemanha não é muito diferente, tendo incluído artistas e trabalhadores independentes no seu fundo de 50 mil milhões de euros para as PME (pequenas e médias empresas). Esta medida inclui doações para o aluguer de locais, empréstimos, subsídios de desemprego e segurança social para trabalhadores independentes, que podem ainda solicitar reembolsos adiantados de impostos.
O Ministério da Cultura de Portugal também não se conteve nos esforços de combate ao vírus. Em primeiro lugar, no início de março, sugeriu com assinalável antecedência a todos os promotores e espaços culturais que considerassem cancelar os eventos dos próximos meses. Esta sugestão aconteceu mais de uma semana antes do governo português anunciar o estado de emergência para combater a pandemia. Pouco depois, medidas mais específicas ganharam forma com instituições como a GDA e a DGArtes a aferir junto das suas comunidades como a Covid-19 está a afetar cada profissão criativa, ou de suporte.
O nível de envolvimento destas indústrias no delinear de iniciativas ficou claro quando um projeto não tão feliz para um TV Fest foi travado devido a todas as críticas que os profissionais levantaram sobre a viabilidade do projeto. O Ministério esteve à altura e, depois de ouvir os profissionais que representa, agiu com rapidez e em conformidade. Além disso, os trabalhadores independentes que perderam as fontes de rendimento devido à pandemia são abrangidos pelas medidas de alívio da segurança social. Medidas estas criadas especificamente para combater a pandemia e que abrangem todos os trabalhadores independentes cuja atividade parou subitamente.
Enquanto ainda estão a ser consideradas novas medidas, o governo recorreu ao setor privado e criou um marketplace, em parceria com a Outsystems, com um canal direto para o financiamento de projetos culturais, Portugal Em Cena. Apesar dos relatos de museus de todo o mundo a afirmar que o investimento privado e as doações caíram abruptamente, os privados agora estão a encontrar novas maneiras de financiar instituições de arte. Isto, no entanto, pode não ser suficiente perante a nova ordem social a impor problemas não tão novos, fruto de usos excessivos de redes sociais, que ora compartimentalizavam as nossas realidades e tornando outras distantes, ora provocam sintomas de isolamento e, consequentemente, ansiedade ou depressão. Isto já decorria antes de haver um SARS-CoV-2 entre nós.
Momentos como o que estamos a viver trazem à tona o melhor e o pior de cada um de nós e da nossa sociedade como um todo. O novo coronavírus trouxe a mudança para junto de nós, não se limitou a estender os problemas de uns para o resto do mundo. Talvez os comportamentos de consumo se alterem com a crescente necessidade de repensar a forma como nos reunimos socialmente. Com lotações e delimitações de entradas a ser impostas a todos os espaços fechados, talvez seja este o grande momento dos espaços ao ar livre tomarem a dianteira nas novas formas de fruição de arte. Ou talvez as maneiras de apreciar e incentivar a criatividade encontrem novas formas de sair desta crise. Há pouco tempo, a transmissão ao vivo para a internet era, já, uma tendência no cenário musical vaporwave (género revivalista da muzak dos anos 80), com milhares de pessoas a invadir canais online, enquanto o número de pessoas realmente presentes nas atuações se contava pelos dedos das mãos. O Boiler Room difundiu a mesma ideia para as para a cultura “clubbing”, permitindo via YouTube (e às vezes via PornHub) uma simulação virtual de uma experiência de discoteca.
Talvez o truque para a gestão da capacidade de um local se baseie na disseminação de dados encriptados, como se fez recentemente com as crypto raves em Berlim, festas promovidas exclusivamente via Blockchain. Talvez o modelo geralmente utilizado por museus, onde um bilhete concede o acesso a exposições, não seja suficiente. Talvez o vínculo com artistas e produtores de conteúdo precise de ser levado para outros níveis, considerando novas maneiras de distribuir arte que não dependam apenas de visitas presenciais, ou decorram unicamente sob um teto e entre quatro paredes. Talvez outras formas de expressão encontrem o seu lugar nos museus, participando ativamente na sua transformação.
As previsões de cenários quasi-apocalípticos sucederam-se nos últimos anos, com principal enfoque nas alterações climáticas, ou no impacto que as redes sociais poderiam ter no tecido social e na saúde mental de uma sociedade inteira. Este cenário em particular, contudo, parecia impossível de prever. Esta pandemia revelou um novo capítulo para a espécie humana, um em que tudo o que tomamos por garantido parece estar à beira de uma mudança, porventura definitiva. O tom em que o texto desse capítulo será escrito, contudo, ainda está por ser definido. Uma coisa é certa: descartar os criativos de gerar novas experiências, de melhorar os nossos hábitos e de assumir um papel ativo na inovação é um erro. A humanidade, atualmente fechada em casa, está ansiosa por novas maneiras de contornar a bolha anti-social e de se ligar ao outro; está ansiosa para recuperar do trauma de se impor isolamento a uma espécie particularmente social. Não vai demorar muito até que procuremos nos artistas novas fugas. A era da ficção científica, de sonhar com novas possibilidades sociais e novas tecnologias, não foi há assim tanto tempo para que já nos tenhamos esquecido do papel que teve — um papel que parece estar a ser reativado.
O mundo está fechado, mas apenas por enquanto. As soluções criativas vão abrir caminho para mais possibilidades, e cabe-nos ter a abertura que permita encaixá-los nas nossas vivências. Pelo nosso bem, e pelo bem de todos os artistas, criativos e profissionais destas indústrias, que sempre acrescentaram significado às nossas vidas.