O futuro é melhor do que pensamos, mas precisa de uma espécie de carta de condução
por Rute Sousa Vasco (Texto) | 16 de Janeiro, 2023
“Há 15 anos a Internet era um escape do mundo real. Agora o mundo real é um escape da Internet”. O futurista Gerd Leonhard trouxe a frase do professor e colunista Noah Smith a uma sala onde se discutia como construir “um melhor turismo” e é difícil que qualquer pessoa com mais de 30 anos não sentisse que resumia bem não apenas os desafios do setor, mas de toda a sociedade.
O turismo vive de pessoas e de experiências no mundo físico, como ir à praia ou ao restaurante, mas, mesmo num setor tão “real”, o digital é hoje um dos grandes desafios — e não apenas por garantir que fazemos reservas sem ter de passar pelo e-mail, essa ferramenta tão anos 90 na cabeça da jovem Geração Z. Uma geração que, dependendo da forma como se fazem as contas (há várias formas de catalogar gerações), representa já 35% da população mundial, num total de três mil milhões de pessoas, adora viajar mas também está preocupada com o impacto ambiental que as viagens provocam.
Quem é o futurista Gerd
Gerd Leonhard é alemão, vive na Suíça e planeia passar várias temporadas nas Canárias, local que ganhou a Portugal na opção que tomou em família com o objetivo de ter uma casa “no sul”. Ser futurista não é a profissão mais comum de se apresentar num cartão de visita e no caso dele é ainda mais inusitada quando se olha para o currículo. Estudou teologia na Universidade de Bona, mas gostava mesmo era de música e no início dos anos 80 mudou-se para os Estados Unidos para estudar no Berklee College of Music.
A vida como futurista começaria já no século XXI, após ter co-escrito um livro intitulado “O futuro da música” que resultou, nas suas palavras, “de ter percebido que era bom a antecipar a forma como as coisas iam acontecer, juntando várias peças”. No caso do primeiro livro, uma das peças importantes foi uma entrevista a David Bowie em que o músico antecipava que, um dia, “a música seria como a água que jorra da torneira” e não “gota a gota”. O streaming de música estava longe mas Gerd Leonhard afirma que essa foi a premissa com que escreveu sobre o tema, antecipando o que seria mais tarde a proposta do Spotify.
O livro mais recente que publicou intitula-se “Tecnologia vs Humanidade“, tem edição em português e faz parte do Plano Nacional de Leitura. Foca-se nos direitos digitais e nas necessidades de políticas e de regulação na esfera tecnológica.
Foi com este ponto de partida que o NEST – Centro de Inovação para o Turismo organizou o Boost – Building Better Tourism, que teve lugar em Matosinhos, a 12 e 13 de janeiro e que recebeu mais de 50 oradores e contou com mais de 400 participantes. Todos maioritariamente de um setor que representa um dos motores de crescimento da economia portuguesa — e não só. O estudo “Travel 2023: Trends and Transitions” que a Mastercard apresentou no evento mostra que quando o turismo cresce, a economia mundial cresce, o que é, na verdade, uma conclusão bastante intuitiva se pensarmos na banda larga de atividades que o setor toca.
Mas, regressemos, ao nosso ponto de partida: que razões temos para acreditar que o futuro é melhor do que pensamos, nomeadamente depois de quase três anos de pandemia e quase um ano de guerra na Europa? Vamos lá iniciar a nossa viagem ao planeta do futurista Gerd e conhecer alguns dos seus companheiros de viagem.
- “O futuro acontece primeiro na imaginação, depois na vontade e depois na realidade”
A frase é de outra futurista, Barbara Marx Hubbard, que viveu 90 anos (1929-2019) e foi evocada como ponte para a principal razão pela qual o futuro é melhor do que pensamos e que assenta nas escolhas que estão na nossa mão.
Este é o momento em que podemos encolher os ombros e pensar com os nossos botões “mais uma frase motivacional que não muda nada”. Sobretudo porque olhamos à nossa volta e vemos crises climáticas, crises económicas, falta de confiança nas políticas, pobreza e, como se não bastasse, a ameaça de um mundo em que em breve muitos humanos serão dispensáveis face à capacidade crescente das máquinas e da inteligência artificial.
“Os próximos 10 anos vão trazer-nos mais mudanças que os últimos 100”, diz-nos o futurista alemão, coisa que já suspeitamos, pelo menos os mais atentos. A diferença é que, contrariando um discurso cético ou mesmo pessimista face ao que aí vem, Gerd Leonhard fala-nos do “bom futuro”.
Um “bom futuro” que exige mudanças significativas no presente porque “o mundo que temos não serve o futuro, o capitalismo não serve o futuro”. Ou seja, em vez de lucro e crescimento teremos de pensar nas pessoas, no planeta, no propósito e na prosperidade.
Em tese, a ideia não é nova e a reinvenção/extinção/reconversão do capitalismo é tema de uma vasta literatura e debate desde, pelo menos, a crise financeira de 2008. Mas o contexto mudou e tem vindo a mudar e é por isso que as premissas do “bom futuro” de Gerd Leonhard têm hoje outro eco.
Por exemplo, sobre tecnologia. Há 15 anos, as possibilidades da inteligência artificial já eram conhecidas, mas discutíamos como seriam executadas – e quando. Neste início de 2023 discutimos uma primeira plataforma “democrática” de inteligência artificial, o ChatGPT, e a forma como poderá mudar o nosso mundo digital — e não só de uma forma mais radical do que a mudança que o Google provocou ao tornar a internet pesquisável com simplicidade e eficiência.
É também por isso que a pergunta mais relevante deixou de ser, em muitos contextos, quando ou como, mas sim porquê. O que leva à palavra-chave “propósito” tão cara à geração que mais depende de um “bom futuro” porque é nele que viverá mais tempo e também cada vez mais decisiva para a geração que hoje já sabe que vai viver mais.
- Como será o “bom futuro”
- O futuro da alimentação
As escolhas que temos pela frente têm implícita uma racionalidade que permita defender o planeta. É por isso que Gerd Leonhard acredita que o futuro será vegetariano (mesmo que, no seu caso pessoal, continue a comer carne). Vegetariano porque 30% da poluição global, nos números que apresenta, decorre da agricultura e da pecuária, e porque será impossível, afirma, escalar esta produção para aumentar 12 mil milhões de pessoas no planeta Terra. O “bom futuro” resulta de já estarmos, nos dias de hoje, a criar as nossas alternativas de alimentação, com carne produzida a partir de vegetais, carne produzida em laboratório e agricultura vertical.
- O futuro da energia
75% da energia que atualmente consumimos vem do petróleo, gás e carvão e, se os impactos ambientais têm provocado uma mudança lenta, a guerra na Ucrânia e os seus custos económicos acelerou consciências, nomeadamente de decisores.
Uma aceleração que reforçou o peso das alternativas já existentes, como a energia solar, eólica e nuclear.
- O futuro da educação
Num presente-futuro em que a tecnologia está em toda a parte, as nossas crianças têm de aprender a fazer o que as máquinas não fazem e, mais do que isso, elas e nós, adultos, teremos de aprender a vida toda, em todos os formatos porque só essa aprendizagem inibe a exclusão de um futuro em que muitas coisas acontecem ao mesmo tempo em toda a parte.
- O futuro do trabalho
“Se trabalharmos como um robot, um robot ficará com o nosso trabalho”. Partindo daqui, Gerd Leonhard antecipa um futuro em que o nosso trabalho será ser humano, deixando para as máquinas as rotinas e os processos que já hoje estão aptas a fazer. Ser humano tem implícito usar as características que nos distinguem das máquinas (pelo menos aos dias de hoje), seja na criatividade ou na bondade e empatia.
- O futuro da saúde
A maior mudança é mesmo na forma como vamos definir os cuidados de saúde. Até aqui têm sido vistos como uma forma de nos tratar quando estamos doentes; no “bom futuro” serão aquilo que garante que nos mantemos saudáveis. A alimentação e o estilo de vida serão “medicamentos preventivos” que a tecnologia ajudará a integrar nas nossas vidas de forma quotidiana e não apenas nas resoluções de Ano Novo. A ciência médica permitirá uma cada vez maior personalização e os sistemas económicos terão como desafio torna-la acessível.
- E o que é preciso que líderes façam?
Esta é a parte do caderno de encargos, seja dos cidadãos através do voto e das escolhas diárias, seja dos líderes cujas decisões têm impacto alargado.
- Uma mudança que começa pelos mercados e por quem gere ativos e investimentos que deverá passar a considerar quatro fatores de futuro – pessoas, planeta, propósito e prosperidade – e não apenas lucro e crescimento.
- Big Tech. Têm estado a inventar o futuro para que depois nos vendam esse mesmo futuro, afirma Gerd Leonhard – e isso tem de mudar de forma a ser colaborativo e distribuído pela sociedade.
- Políticos. Devem ter uma espécie de “carta de condução” do futuro, ou seja, uma prova de como entendem o que aí vem e são capazes de liderar essa mudança.
- O conceito que Gerd Leonhard propõe é de um “conselho de sábios”, inspirado em modelos como os da Antiga Grécia, em que pessoas que não são líderes políticos ou económicos, mas que têm conhecimento sobre as diferentes esferas em que atua o ser humano, falam e aconselham sobre os melhores caminhos a seguir.
Esta visão de “bom futuro” implica trabalho de casa de todos, uma espécie de “fitness” que nos prepare a cada dia para entender as mudanças e o nosso papel. Mas também decisões práticas, como não ceder dados a empresas tecnológicas que vão abusar da sua utilização, não comprar produtos ou serviços a empresas que não se comprometem com um bom futuro, não investir em empresas que não tenham esse mesmo compromisso.
- O “bom futuro” do turismo
As propostas de Gerd Leornard não exigem uma especial declinação para o setor do turismo pelo facto de este ser, por definição, um espaço de convergência dos temas listados, da alimentação à energia, da saúde à educação e ao trabalho. É também por isso que se torna um laboratório que pode antecipar os cenários futuros.
Na conferência Boost – Building a Better Tourism foram partilhados alguns dos exemplos mais críticos, como o Airbnb e o impacto nas rendas de quem habita as cidades ou o transporte aéreo e o impacto nas emissões de CO2.
Neste último caso, por exemplo, a proposta que Gerd Leonhard trouxe passa pela aplicação de taxas sobre o valor dos bilhetes de avião em função do número de voos anuais. Proposta de um orador que, antes da pandemia, fazia uma média de 300 viagens de avião por ano. Hoje assume que essa era uma prática a que não pretende regressar, tendo ao invés investido num estúdio que lhe permite fazer palestras à distância numa plataforma digital. O “real”, que os humanos tanto precisam, é garantido, explica-nos, pela interação que replicou neste formato em que, confessa, só sente a falta “de poder ver os rostos das pessoas que estão a assistir”.
A primeira viagem do ano seria taxa-zero para todos e incremental a partir daí.
Outras das áreas em que se torna necessária a construção de melhores soluções é na distribuição dos impactos nos diferentes países. O grupo que tem rendimentos mais elevados em cada país responde por 51% das emissões de CO2 versus 13% dos que têm baixo rendimento, o deve levar a equacionar custos diferenciados.
E, num tema especialmente sensível, o impacto do Airbnb nas cidades deve ser repensado à luz das consequências no mercado de arrendamento e na vida das comunidades locais, por um lado beneficiadas economicamente pelo consumo associado ao turismo, mas por outro inibidas de viver nos locais face ao aumento dos custos.
Ainda ao nível da mobilidade, há toda uma linha de literacia e de mudança de hábitos que é necessário promover para que o turismo possa ser mais sustentável. Os voos domésticos, seguidos dos voos de longo curso e das viagens de carro com um só passageiro lideram a lista dos impactos negativos em matéria de poluição.
É este o menu resumido de um “bom futuro” ou, pelo menos, um melhor. Um lugar onde estaremos mais confortáveis se conseguirmos atuar como arquitetos e não como vítimas, é o que diz Gerd Leonhard.