O maior rival do ChatGPT é francês?
por Abílio dos Reis (Texto) | 4 de Março, 2024
A “OpenAI da Europa”, a francesa Mistral, apresentou na semana passada o modelo para concorrer com o GPT-4 e uma nova parceria com a Microsoft. E se a primeira parte da notícia trouxe benchmarks otimistas para as pretensões do ecossistema europeu, a segunda despertou a “fúria” no parlamento europeu.
A francesa Mistral — não confundir com a empresa californiana ligada ao estilo de vida holístico dos desportos náuticos fundada nos anos 70 — ainda nem tinha bem “nascido” e já gerava manchetes e levantava rondas de esfregar olhos esbugalhados. Afinal, com apenas quatro semanas de existência, angariou 105 milhões de euros, e ainda não tinham desenvolvido o seu primeiro produto.
Mas sobre isso e os factos que a levam a ser a apelidada de “OpenAI da Europa”, já falámos aqui. Agora, volvido um ano e 450 milhões de euros de financiamento depois, há novidades e um seguimento a fazer ou não tivesse a startup fundada por ex-investigadores da Google DeepMind e Meta, que está avaliada em 1,8 mil milhões de euros, anunciado uma parceria com a Microsoft e apresentado o seu mais recente e mais poderoso modelo LLM (a tecnologia por detrás de produtos de IA generativa) à data, o Mistral Large.
Au Large
Como seria de esperar, o ecossistema do Velho Continente tomou nota do acontecimento — e os reguladores da Comissão Europeia também (já lá vamos).
O Mistral Large é um sistema multimodal (é capaz de “conversar” e gerar conteúdo e código) e visa competir diretamente com os modelos GPT-4 (da OpenAI) e o Claude 2 (da Anthropic, que conta com o “apoio” da Google e Amazon). E ao contrário dos modelos anteriores da startup francesa (o Mistral 7B e o Mixtral 8x7B), não é open source.
A API do Mistral Large está disponível na “Le Plateforme” do site da Mistral e na Azure da Microsoft.
O que dizem os testes
Segundo os resultados do benchmark MMLU partilhados pela Mistral (um teste específico que avalia estes modelos generativos de IA), o seu desempenho a nível de modelos disponibilizados por API só fica a dever ao GPT-4. O resto do mercado (Claude 2, Gemini Pro, LLaMA) está um pouco distante dos resultados da startup francesa.
Mas a maior diferença para a concorrência, segundo a Mistral, é o facto de ser verdadeiramente multilingue e ser fluente em cinco línguas: francês, inglês, alemão, espanhol e italiano. Se é algo totalmente inovador? Não, uma vez que os modelos da Google e OpenAI também o são. No entanto, a Mistral sublinha que o seu modelo tem “uma compreensão diferenciada da gramática e do contexto cultural” para todas as línguas, o que, alegam, vai levar a melhores resultados.
- Este ponto pode ajudar a explicar o envolvimento da Microsoft. O ChatGPT da OpenAI recebe instruções noutras línguas para além do inglês, mas os investigadores descobriram aquilo que qualquer utilizador da língua portuguesa já tinha dado conta: embora o sistema seja bom a traduzir para o inglês, quando lhe é pedido para fazer o contrário, o seu desempenho deixa a desejar.
Paralelamente ao Mistral Large, a startup francesa também lançou uma nova versão do seu modelo mais pequeno e mais barato, o Mistral Small, otimizado para a diminuir a latência. Este modelo supera o Mixtral 8x7B (o mais potente dos open source) e funciona como uma solução intermédia para quem não quiser (ou precisar) optar pelo produto premium.
O LeChat
A Mistral lançou também a versão beta do LeChat, o seu ChatGPT. Para já, “é um ponto de entrada de conversação para interagir com os vários modelos da Mistral AI” e oferece “uma forma pedagógica e divertida de explorar a tecnologia”.
Ou seja, o utilizador comum já consegue fazer questões e explorar o chatbot, que está treinado para ser o menos opinativo e útil/conciso possível. Mas há também uma opção corporate, o Chat Enterprise. Disponível mediante contacto, tem o “potencial” para ajudar as empresas “a aumentar a produtividade da sua equipa”.
A parceria com a Microsoft
Como nota a VentureBeat, embora o desenvolvimento de modelos com bom desempenho seja obviamente fundamental para o sucesso destas novas empresas de IA, para ser rentável e continuar a crescer, é necessário chegar às pessoas e aos clientes certos. E é aqui que entra a parceria estratégica da Mistral com a Microsoft:
- A Mistral vai receber uma tranche de 15 milhões de euros (que a Mistral diz serem uma extensão do levantamento de Série A de há uns meses e a Microsoft diz que se converterá em capital na próxima ronda de financiamento da Mistral) e uma montra jeitosa via exposição na nuvem Azure (disponível no Azure AI Studio e Azure Machine Learning), ao mesmo tempo que vê a gigante tecnológica garantir o hardware e infraestruturas que vão dar muito jeito para treinar e gerir os seus futuros modelos.
- A Microsoft ganha porque os clientes/programadores da sua nuvem têm outra opção para além dos modelos da OpenAI — e logo uma que “fala fluente” noutras línguas, o que dá jeito para reforçar a sua posição no mercado europeu.
O acordo também prevê que a Microsoft passe a ter uma pequena participação na empresa francesa. Mas como a Mistral diz que o financiamento faz parte da ronda Série A anterior e não altera a sua avaliação, isso significa que a Microsoft vai ter menos de 1% do capital da empresa francesa, de acordo com o Techcrunch.
A UE está atenta
Ainda assim, apesar do 1%, o regulador da Comissão Europeia já disse que vai investigar os contornos da parceria porque se levantaram vozes “furiosas” no Parlamento Europeu (PE). Não só já havia desagrado com o facto de o AI Act, o primeiro quadro jurídico em matéria de IA, ter sido alterado para satisfazer as exigências de empresas como a Mistral, como agora a própria Mistral anunciou uma ligação estreita com a empresa mais valiosa do mundo — precisamente aquilo que muitos no PE não querem que aconteça.
Certo é que esta nova investigação vai apertar ainda mais o cerco à Microsoft na Europa, uma vez que a tecnológica já está a ser pressionada pelos reguladores da UE e do Reino Unido devido ao seu investimento de 13 mil milhões de dólares na OpenAI.
E mesmo que o Presidente da Microsoft, Brad Smith, tenha vindo explicar que não se devia de olhar para esta cooperação como “um investimento apenas na Microsoft ou nos produtos americanos”, mas sim como “um motor” que vai “aumentar a inovação e o crescimento na Europa”, é difícil acreditar que os reguladores amoleçam a sua posição.