FTX: É este o “momento Lehman Brothers” das criptomoedas?
por Rute Sousa Vasco (Texto) | 15 de Novembro, 2022
A comparação com a crise financeira de 2008 foi feita por economistas, analistas e por líderes de empresas concorrentes da FTX, como é o caso da Binance cujo CEO, Changpeng Zhao, teve um papel crucial nos sete dias em que a plataforma fundada por Sam Bankman-Fried desabou.
Foi uma semana de nervos para milhões de pessoas que investem em criptomoedas e várias vozes vieram evocar a crise financeira de 2008, considerando que este poder ter sido o “momento Lehman Brothers” da criptoeconomia. O futuro o dirá, mas, no presente, a falência da FTX é uma história em que convergem bilionários quase instantâneos, grandes casas de investimento e até o Twitter e Elon Musk, ou não fosse este o ano da graça de 2022.
Como se não bastasse, tudo aconteceu na semana das eleições para o Congresso americano e o jovem fundador da FTX, Sam Bankman-Fried (ou SBF como é conhecido pela tribo das cripto e do Twitter) foi nada menos que o segundo maior apoiante financeiro da campanha de Joe Biden, em 202, apenas superado por Michael Bloomberg.
Sete dias alucinantes
Uma das discussões mais interessantes na criptoeconomia é sobre o que move os cripto-empresários e os cripto-clientes. Para uns, é uma revolução política, social e económica, para outros apenas (mais) uma forma de ganhar dinheiro. O que aconteceu com a FTX desiludiu uns e outros, os primeiros por anteciparem que voltaram uns degraus atrás na credibilização da criptoeconomia, os segundos porque se assustaram com os números que dizem que, em três dias, as 15 maiores criptomoedas perderam mais de 152 mil milhões de dólares.
Quem é Sam Bankman-Fried (ou SBF): Nasceu em 1992 e cresceu no campus de Stanford, filho de dois académicos que davam aulas na Law School da universidade californiana.
O fundador da FTX não seguiu as pisadas dos pais e licenciou-se no MIT em Física e Matemática. É daí que sai para o primeiro emprego na Jane Street, uma empresa de trading onde aprendeu os fundamentos da área que poucos anos mais tarde lhe traria fortuna. Não demoraria muito a fundar, em 2017, a sua própria empresa de trading, a Alameda Research onde começou a negociar criptomoedas, identificando oportunidades entre os mercados em que a Bitcoin cotava a um valor mais baixo e aqueles onde tinha valorização superior. Mas, reza a história, que foi uma conferência a que assistiu, em 2018, em Macau que o fez interessar definitivamente pela intermediação de criptomoedas.
Em 2019, fundou a FTX, hoje com sede nas Bahamas, que, até à semana passada, era a segunda maior plataforma de compra e venda de criptomoedas, tendo transacionado, só este ano, 627 mil milhões de dólares. SBF é descrito como um grande fã de videojogos, nomeadamente League of Legends (LoL). Ficou na história, num post publicado pela Sequoia Capital, o relato de estar a jogar enquanto participava numa video call com a equipa investimento daquela que é uma das maiores casas de venture capital e que investiu 210 milhões de dólares na FTX. Esta semana, o post foi removido do blog da Sequoia Capital.
De cavaleiro branco a “i fucked up”: Joe Biden não foi o único político que o fundador da FTX apoiou nestes dois anos em que a plataforma se tornou uma marca de referência na criptoeconomia. A plataforma ganhou protagonismo em várias esferas. Deu nome a estádios (FTX Arena, antes American Airlines Arena, em Miami, contrato que foi denunciado na sexta-feira, na sequência do pedido de falência) e teve campanhas de publicidade protagonizadas por celebridades como Tom Brady, jogador da NFL, e a agora ex-mulher e modelo Gisele Bundched, e a tenista Naomi Osaka.
Não eram os únicos sinais exteriores de sucesso. Em setembro, SBF ofereceu ajuda – no valor de 5 mil milhões de dólares – a Elon Musk na compra do Twitter, segundo foi revelado. Ganhou o epíteto de “cavaleiro branco”, também este ano, não pela “ajuda” a Musk, mas por ter ido em socorro de empresas de cripto em dificuldades, como a Block Fi, a quem emprestou 250 milhões de dólares, e o broker Voyage Digitak, a quem emprestou 500 milhões de dólares.
Ao mesmo tempo, afirmou-se comprometido com o altruísmo e criou o FTX Future Fund para investir em causas sociais, além de declarar que iria entregar os lucros que realizasse ao longo da vida a instituições que fizessem um mundo melhor.
Entrou na lista dos bilionários em 2021 e, na última ronda de investimento, a FTX ficou avaliada em 32 mil milhões de dólares. Mas, em outubro deste ano, o Bloomberg Billionaire Index avaliava já a fortuna pessoal do fundador em “apenas” 10,5 mil milhões de dólares. A 8 de novembro, valia 991 milhões de dólares (a maior queda num só dia neste índice da Bloomberg). A 10 de novembro, Sam Bankman-Fried escrevia na sua conta de Twitter: “I fucked up, and should have done better”. A 11 de novembro, o índice de bilionários da Bloomberg considerava que SBF já não tinha qualquer fortuna.
O filme dos acontecimentos: Os acontecimentos da última semana – e provavelmente dos três anos de vida da FTX – têm todos os ingredientes para um bom filme. E, provavelmente, vamos poder assistir, já que se soube por estes dias que Michael Lewis, o mesmo autor de “The Big Short”, que deu origem ao filme com o mesmo nome, tem acompanhado o percurso do fundador da FTX nos últimos seis meses.
Vamos à cronologia.
– Domingo, 6 de novembro. Changpeng Zhao (ou CZ, como é conhecido), fundador da Binance, a maior plataforma de compra e venda de criptomoedas, anunciou que ia vender os FTT que detinha. FTT são os token da plataforma FTX e a razão apresentada para a venda era a divulgação pela Coindesk de um relatório sobre a Alameda Research segundo o qual uma parte significativa das reservas da empresa de trading estavam na sua própria criptomoeda, a qual oferecia descontos aos utilizadores nas operações na plataforma. Ou seja, os fundos que a Alameda Research usava para fazer investimentos eram suportados por uma moeda criada pela empresa-irmã, a FTX. Em si mesmo, não é proibido, mas configurava um risco acrescido de transparência e de liquidez.
O anúncio de Zhao provocou uma corrida aos levantamentos na plataforma: em 72 horas, cerca de seis mil milhões de dólares foram retirados pelos clientes (em fevereiro de 2022, a FTX tinha mais de um milhão de utilizadores).
– Terça-feira, 8 de novembro. O mesmo Changpeng Zhao anunciou um acordo para comprar a FTX, dizendo que esperava que os FTT estivessem “altamente voláteis” nos dias que se seguiriam (aviso que apenas acentuou a perda de valor que nesse dia atingiu uma desvalorização de 80%).
– Quarta-feira, 9 de novembro. O Wall Street Journal anuncia que a Binance – aka Changpeng Zhao – desistiu do negócio da compra e, no mesmo dia, a Bloomberg torna público que a SEC e a Commodity Future Trading Comission estão a investigar a FTX e o seu fundador. Também no mesmo dia, fontes anónimas citadas pela Reuters adiantam que Sam Bankman-Fried teria transferido 4 mil milhões de dólares de fundos de clientes na FTX para a sua empresa de trading, a Alameda Research.
– Sexta-feira, 11 de novembro. Sam Bankman-Fried demite-se de CEO da FTX e anuncia que a FTX, a FTX US (subsidiária americana) e Alameda Research submeteram pedidos de insolvência. Segundo a CNBC, nos documentos apresentados estavam referenciados 100 mil créditos com um valor global entre 10 e 50 mil milhões de dólares.
Para que a história seja rematada de ironia dos tempos, o CEO nomeado oficialmente para substituir Sam Bankman-Fried é John J Ray III, o advogado que supervisionou a liquidação da Enron, a empresa de energia que colapsou em 2001 e que deu origem a um escândalo de auditorias.
Os dias seguintes: A Bitcoin, a criptomoeda mais valiosa, foi negociada abaixo dos 16,500 dólares esta segunda-feira e alguns analistas admitem que pode ir abaixo dos 10,000 dólares (o que seria um enorme rombo).
Ether, a segunda criptomoeda mais valiosa, foi negociada também esta segunda-feira a 1,230 dólares, com uma quebra acima dos 20% face à semana passada.
Esta segunda-feira, 14 de novembro, o CEO e fundador da Binance referiu-se, numa conferência na Indonésia, ao famigerado ano de 2008, afirmando que a comparação com o atual momento cripto “é provavelmente uma boa analogia” e usou a palavra regulação, pouco grata no contexto do setor. “Nas últimas semanas, temos visto o setor em convulsão, por isso precisamos de alguma regulação, mas precisamos de fazer isto bem”.
O inverno das cripto foi uma expressão usada durante todo o verão de 2022. Mas a pergunta que agora todos fazem é se isto é já o inverno ou se a verdadeira tempestade ainda está por chegar.