Da falta que os leões nos fazem à falta de novos Mozart nas nossas vidas. Duas razões para continuar a acreditar que vale a pena ir a conferências
Pode ser a vontade de ouvir um orador sobre o qual temos grande curiosidade. Pode ser porque a empresa a que pertencemos nos pediu para ir. Pode ser pela possibilidade de conhecer outras pessoas. Se estas são as principais razões do lado de quem assiste a uma conferência, do lado de quem fala a tarefa é hoje mais dura do que há 10 ou 20 anos. Porque já se fizeram tantas conferências, já se banalizou tanto a condição de “orador” que para quem quer fazer alguma diferença, ser conferencista é um desafio mais exigente.
É neste ponto que vem à memória um certo diálogo do remake “Assim nasce uma estrela” realizado e protagonizado por Bradley Cooper ao lado de Lady Gaga. Um diálogo em que o personagem de Bradley Cooper diz à personagem de Lady Gaga que tudo o que ela precisa de fazer é ser autêntica – e que vão gostar dela por isso. Só que ser autêntica ou autêntico depois de dezenas ou centenas de conferências e quando a regra são discursos previsíveis e powerpoints na maior das vezes maçadores, é tudo menos fácil. Mesmo que os públicos sejam também muitas vezes pouco exigentes ou simplesmente pouco informados e tomem por novo e original aquilo que quem lê livros e presta atenção ao que nos rodeia sabe ser conhecimento de outros.
Tudo isto faz com que, na qualidade de participante em conferências, devamos olhar para estes eventos de uma forma não muito distinta daquela com que avaliamos o programa de um festival de música, de livros ou até de gastronomia. Importa escolher quem queremos mesmo ouvir, não ir com a expetativa que todos os oradores valerão o tempo e a atenção, e deixar espaço para ser surpreendido por alguém ou alguma coisa.
A conferência “The state of the art” que esta semana teve lugar na Nova SBE, assinalando o 10º aniversário da WinWorld, uma empresa especializada na organização deste tipo de eventos, reuniu essas duas condições: as expetativas correspondidas de um orador (neste caso, dois) e a surpresa perante algo, neste caso alguém, que trouxe algo de novo. Larissa Sousa, responsável do programa de educação para raparigas do Parque Nacional da Gorongosa, e Paulo Azevedo, chairman e CO-CEO da Sonae. Ambos juntos no mesmo palco a propósito de um tema pouco comum ao segundo – a recuperação do Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique.
Falar do Parque Nacional da Gorongosa é falar de biodiversidade e da importância que os recursos naturais terão no futuro da humanidade. No futuro de todos nós. Tudo verdade – tal como é verdade que os apelos para a conservação do planeta se tornaram demasiadas vezes nos discursos de líderes meras palavras de circunstâncias, palavras que têm de ser ditas sem que daí resultem consequências. E que esse círculo vicioso repetido vez atrás de vez nos torna a todos ou um pouco mais céticos, nuns casos, ou um pouco mais naives noutros.
Foi também por isso que valeu a pena ouvir Paulo Azevedo dizer duas ou três coisas. A primeira, a de não puxar os galões, nem dele, nem da Sonae. Começou por dizer que é a mulher quem mais se tem empenhado no trabalho de conservação na Gorongosa, é ela que tem um cargo formal no parque e seria dela o lugar natural naquele palco – não dele. Sobre a Sonae, a afirmação clara de que o grupo não é um grande financiador da Gorongosa. O que, aliás, seria fácil de comprovar – a recuperação do Parque Nacional da Gorongosa contou com um apoio que fez a diferença de um filantropo americano, Greg Carr, que desde 2004 investe no local através da sua fundação e que se envolve pessoalmente. Em entrevista à Deutsche Welle, em novembro de 2017, é o próprio Carr que explica como tudo aconteceu: “Fui convidado pelo presidente Joaquim Chissano e pelo seu Governo. O Presidente Chissano teve a iniciativa de mudar a estrutura dos parques nacionais, que ficava sob a responsabilidade única de entidades de conservação, para a administração de empresas que podem amparar a população local. Ele desenvolveu essa ideia com Nelson Mandela (antigo Presidente da África do Sul) em 1992, ano da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – ou o Rio 92. À época, eu era um ativista de direitos humanos e Chissano sentiu que essa era a abordagem ideal para trazer aos seus parques; e assim deixar o legado colonial para trás”.
No fim da guerra civil que dividiu Moçambique, mais de 90% da vida selvagem do parque tinha sido perdida. Hoje, a Gorongosa é um dos maiores ecossistemas de biodiversidade e foi inclusive ampliado em mais quatro mil quilómetros quadrados. Não se trata apenas de recuperar espécies da fauna e flora do parque, trata-se também de promover o bem estar às 175 mil pessoas que vivem na reserva natural – e é neste ponto muito concreto que Larissa Sousa desenvolve o seu trabalho. Um trabalho que parte de uma premissa assustadora que se percebe olhando para um gráfico com apenas três colunas: uma com a percentagem de raparigas no ensino primário (imaginem como um prédio de 10 andares), outra no secundário (imaginem como um prédio de um andar e meio) e outra no universitário (imaginem como um prédio de apenas rés-do-chão e baixinho). O que Larissa faz é desenvolver programas junto da comunidade de raparigas do parque, sensibilizando-as para os temas da conservação ambiental e ao mesmo tempo dotando-as de ferramentas que possam fazer delas não apenas educadoras das suas famílias, mas também capazes de as tornar líderes na comunidade.
É uma realidade distante da Maia e do grande grupo económico Sonae, tornada próxima por um período sabático em que Paulo Azevedo e a família estiveram a viver em Moçambique e que culminou numa participação efetiva nos projetos do parque da Gorongosa. Como é que o Paulo Azevedo da Sonae convive com o Paulo Azevedo da Gorongosa? Não se consegue saber tudo, ou quase nada na realidade, em 15 minutos de palco. Mas consegue-se perceber que enquanto empresário está a falar de alguma coisa que é mais que discurso institucional. Que está efetivamente preocupado com outro gráfico que, afirma, lhe traça o desenho do mundo que nos espera. Voltemos ao exercício de imaginação: pensem na boca de um crocodilo aberta na sua máxima amplitude. Vejam a mandíbula de cima como a linha do crescimento da população no mundo – que vai continuar a crescer até que estagne. Vejam a mandíbula de baixo, com sentido pronunciado descendente, como os recursos disponíveis no planeta para garantir a vida a todos os seus habitantes. É uma realidade de costas voltadas e este “crocodilo” ameaçador só irá fechar progressivamente a boca mediante um esforço enorme de países, empresas, pessoas.
O empresário Paulo Azevedo tem mais fé nas pessoas do que nas empresas – mesmo sendo ele também uma pessoa que decide ou participa na decisão da vida específica de um grupo de empresas. Mas, afirma, a exigência tem de vir das pessoas, dos consumidores – só assim se força a mudança. Até porque no mercado de capitais que manda na maior parte das empresas, a biodiversidade, a sustentabilidade e toda a terminologia associada tem a importância que os ratings lhes derem. Ou seja, só são a doer quando os ratings – que traduzem, mesmo que raramente pensemos nisso, sentimentos e pulsões dos humanos, piscam. Há que fazê-los piscar- ou doer.
Estava feita a conversa entre Paulo Azevedo e Larissa Sousa. E já tinha valido a tarde. Mas houve ainda o brinde da surpresa, mesmo a fechar, com a subida ao palco de Martim Sousa Tavares – o músico, o maestro de 28 anos que, nem de propósito, nos foi falar de “deflorestação intelectual”. Nas palestras, como nas notícias, muito depende das primeiras palavras. Conseguimos ou não agarrar o leitor, o ouvinte? Martim conseguiu-o desde o primeiro minuto – arte dele. O tema? Música clássica. A abordagem? Diferente de tudo o que estamos habituados a ouvir. Ora oiçam-no: “A música clássica ficou estagnada porque ninguém faz novidade. Antes, os artistas criavam novidades e quando a novidade era melhor que as outras tornava-se num clássico. Hoje é uma experiência anacrónica, o papel do público é estar quieto e o papel do compositor é estar morto. É isso que está matar a música clássica – na verdade está a suicidar-se”.
Se o importante é conquistar a atenção, sai um “check” para o Martim, já conseguiu. Seguiram-se mais 20 minutos de discurso apaixonado sobre como trazer a música clássica para a contemporaneidade e romper com a armadilha que nos deixa “perdidos na nostalgia, porque só gostamos do que conhecemos e não há nada de novo”. Para fazer isso, além de palavras, o maestro levou ao palco uma orquestra aparelhada com cinco tachos (quatro dele e um pedido emprestado na NOVA SBE), um lavatório (comprado na Leroy Merlin e com etiqueta ainda para poder devolvido depois da atuação), trituradoras, batedeiras, um piano, um violino e um violoncelo. Foi com estes instrumentos que os músicos tocaram uma música que, sendo clássica, é nova: a obra contemporânea "Hell's Kitchen", de Robert Paterson que a descrever pelos “sons imaginários de uma cozinha no inferno como ponto de partida”.
A sessão chamava-se “o futuro inclui música clássica e Netflix” e depois de ouvir Martim Sousa Tavares também este futuro parece melhor.