“Algumas pessoas não têm noção, mas vivemos em quase ambiente de pirataria mundial”
Há apenas três meses, Nuno Brito Jorge, CEO co-fundador da GoParity, estava também longe de imaginar que andaria à procura de máscaras, óculos e ventiladores – e aviões para os trazer – um pouco por todo o mundo.
Mas foi isso que aconteceu com esta startup que, nos tempos normais, liga promotores e investidores em projetos com impacto social e ambiental e que em março se juntou ao movimento tech4covid19 para ajudar a angariar dinheiro que permitisse comprar materiais em falta no combate à pandemia.
A meta eram 100 mil euros e o valor mais que duplicou com a contribuição de quase oito mil pessoas e empresas.
Nasceu assim uma das maiores campanhas de angariação de fundos. Agora, de regresso a temos mais normais, a Go Parity espera que a solidariedade e o ativismo não se percam.
A campanha promovida pela GoParity e pelo Movimento Tech4Covid19 foi o tema em destaque no magazine do The Next Big Idea desta semana.
Porque é que se juntaram ao movimento Tech4Covid-19?
A verdade é que aconteceu tudo de forma um bocado inesperada e muito rápida, bem ao estilo startup. Temos um grupo, o Founders Founders que é uma espécie de clube informal de fundadores de startups, quase todos portugueses. A certa altura, no grupo do Whatsapp do Founders Funder, surgiu a discussão sobre quem já tinha posto as equipas a trabalhar desde casa por causa do coronavírus.
No meio da conversa foram aparecendo artigos e opiniões e começou a haver um consenso sobre o facto de a decisão mais responsável, por uma questão de precaução, ser adotar o trabalho remoto obrigatório. Na GoParity também tínhamos adotado esta medida, e quando o fizemos, dissemos: “Já que agora todos vamos fazer isto, porque não tentarmos dar o exemplo e incentivar outras pequenas empresas e startups a fazer o mesmo?”.
Do ponto de vista de projeto e de ideias, e sei que foram muitas, qual foi o problema que acharam que podiam ajudar a resolver?
Só um passo atrás. Há um momento-chave em que a ideia de ter as equipas em remote se torna no movimento Tech4Covid19 que foi quando percebemos que temos alguma capacidade de influência e temos tanto talento, tecnologia, capacidade e vontade de fazer coisas. E por isso pensámos porque não tentar ir mais longe e usar a nossa tecnologia para resolver problemas que a Covid-19 vai trazer e antecipar algumas soluções que possam, pelo menos, mitigar o crescimento da pandemia.
Dentro destes projetos e necessidades que havia para suprir, claro que a compra de material hospitalar foi uma das prioridades. Olhámos para países que estavam pior que Portugal e percebemos que ia faltar material hospitalar: ventiladores, máscaras, luvas, viseiras, etc. Por um lado houve um projeto dentro do movimento Tech4Covid19 que se dedicou mais ao procurement, identificação de fornecedores, negociação, mas havia também um outro lado do problema para resolver que era termos dinheiro para comprar este material, mal conseguíssemos a identificação dos sítios onde comprar. E foi aí que entrou a GoParity.
Decidiram fazer uma campanha para angariar 100 mil euros. Como definiram esse valor e de que forma montaram a campanha?
Decidimos fazer isto fora da plataforma da GoParity, mas usando a nossa tecnologia, precisava só de algumas adaptações. O que fazemos são investimentos através de empréstimos e neste momento tínhamos de receber donativos, mas já tínhamos todos os meios de pagamento acionados ou facilmente acionáveis para adaptarmos para donativos. Portanto, o primeiro passo foi pensar nas necessidades de adaptação tecnológica que tínhamos de fazer, depois desenhar o conteúdo da campanha, clarificar a campanha e obter as autorizações necessárias.
Quando pensámos no montante que queríamos angariar, pensámos que queríamos ser rápidos a fazer as primeiras compras, porque uma das vantagens de sermos startups era conseguirmos ser rápidos a identificar as compras, juntar o dinheiro e pôr todo o plano em marcha. Daí os 100mil euros surgirem sem grande base científica por trás. Foi mais ou menos assim: com 100 mil euros conseguimos comprar 3 ventiladores, conseguimos comprar quase 100 mil máscaras … foi mais um olhar para números redondos e que pudessem fazer sentido do ponto de vista do fabricante, a quem vamos comprar. Pensámos numa ótica de alguma quantidade, mas não apontámos para um objetivo tão elevado que tornasse difícil chegar aos montantes necessários. Até porque sempre tivemos a noção de que o problema, desde o início, não era acharmos que não ia haver dinheiro para a compra de material. O problema era sermos mais rápidos a conseguir angariar o capital necessário e a conseguir fazer o material chegar a Portugal rapidamente, até as entidades formalmente o poderem fazer.
O que é que acontece nas primeiras 24 horas da campanha estar no ar?
Nas primeiras 24 horas que depois se tornaram nas primeiras 78 horas passámos por um processo que nunca tínhamos passado: estar a trabalhar em desenvolvimento informático em real time, com uma campanha a decorrer. Isso foi um desafio brutal. Para quem está habituado a trabalhar em informática, ninguém gosta de trabalhar assim, de desenvolver e pôr no ar ao mesmo tempo. Mas conseguimos fazer isso e correu super bem.
Nas primeiras 24 horas não tenho a certeza do montante que angariámos, mas tenho perfeita noção de que foi um momento em que, quem doou, quem fez donativos, foram pessoas que tinham uma crença enorme no que estávamos a fazer. Os primeiros 3 ou 4 dias foram muito à volta de trazer para a campanha os elementos que criassem confiança nas pessoas, ainda não tínhamos autorização do Ministério da Administração Interna para lançar a campanha. Foram mesmo aquelas pessoas que tinham imensa vontade de ajudar e para quem isso nem sequer era uma questão e confiaram no movimento.
Quanto tempo demoraram a alcançar os 100 mil euros?
Acho que foram pouco mais de 7 dias.
Foi rápido, 7 dias ...
Aliás, quando chegámos aos 7 dias, acho que estávamos nos 70 mil euros. Fizemos isto com uma autorização do Ministério da Administração Interna que são feitas por 7 dias. Lembro que quando chegámos ao fim dos 7 dias ainda nos faltava algum dinheiro, mas era pouco e tentámos convencer o Ministério da Administração Interna a dar-nos uma prorrogação do prazo. Não fazia sentido fechar uma campanha que estava quase a chegar ao objetivo e começar outra do zero, quando estávamos quase a chegar aos montantes que procurávamos.
Essas autorizações do ministério são o quê, ou funcionam porquê?
É uma lei, acho que de 1991 ou 1999 que regula as campanhas de angariação de receitas. Estou convencido que, face a esta abordagem que tivemos agora, vai quase de certeza ser âmbito de revisão, porque está completamente desatualizada no tempo. Estabelece que durante sete dias pode ser feita a angariação de receitas para determinada causa e isto tem de ser feito através da abertura de uma conta específica para receber esse dinheiro.
E como dão o salto? Em 7 dias estavam com dois terços do vosso caminho, mas no final da campanha acabaram por quase duplicar o objetivo. Como evoluíram dessa maneira?
Um ponto super-importante foi que fomos recolhendo ou atingindo cada vez mais momentos que serviram também para criar confiança. A certa altura tornou-se a maior campanha orgânica que alguma vez fizemos. Além de haver imenso palavra-puxa-palavra, também começámos a ter coisas para mostrar. Primeiro algumas menções na imprensa, depois veio a primeira compra depois começaram outras empresas a juntar-se à campanha, por exemplo um caso super importante foi o da Critical Software que a certa altura nos disse que queria colaborar com a campanha e convidou os seus colaboradores a fazerem donativos, oferecendo, a triplicar, os donativos que fizessem. Isto deu, obviamente uma força muito grande à campanha também.
Quanto foi angariado só com a Critical Software?
Foram 28 mil euros, entre os colaboradores e a própria empresa.
Houve também uma empresa em Aveiro que fez um donativo significativo …
Sim. Além do exemplo da Critical Software tivemos donativos significativos: a AGEAS, a UPTec, no Porto, não é uma empresa, mas é muito próxima do mundo das startups, tivemos a Indasa, de Aveiro, também. Depois tivemos algumas outras empresas que fizeram donativos mais pequenos, mas que fizeram questão de se juntar à causa.
E do ponto de vista das pessoas individuais. Quantas pessoas participaram?
No total, tivemos mais de 6.500 pessoas a fazer donativos. Tanto doadores anónimos, que passaram para os seus amigos, como várias pessoas, caras públicas, que fizeram questão de dar alguma força à campanha.
Estamos a falar de quem, por exemplo?
Estamos a falar da Catarina Furtado, Cláudia Vieira, Mia Rose, Laurinda Alves, que até escreveu um artigo em que falava da campanha. Várias pessoas do mundo do futebol: o Silas, o Paulo Sousa. Isto cria imensa confiança em algumas pessoas que podiam estar com vontade de fazer, mas ainda de pé atrás.
Olhando agora para as compras. Já sabendo que tinham meios financeiros, o que decidiram comprar primeiro e como organizaram esse processo de compra?
Fizemos compras de duas formas distintas. Havia outra campanha de angariação de fundos a decorrer em simultâneo com a nossa e que estava um pouco mais atrás no ritmo de angariação de fundos, mas mais à frente no processo de compra – já tinham sido os primeiros a fazer uma encomenda, tinham encontrado o fornecedor e só lhes faltava o dinheiro para pagar a encomenda quando chegasse a Portugal. Quando vimos isso, e enquanto decorria o nosso processo de seleção de procurement, proativamente contactámo-los e propusemos dedicar parte dos fundos que angariássemos a ajudá-los na compra deles. Portanto, a nossa primeira compra foi de 33.500 euros que na verdade foi para comprar uma parcela de uma compra feita pela outra campanha.
E que equipamento que iam comprar?
Foram máscaras cirúrgicas, as mais simples, as máscaras FP2, com respiradouro que podem ser utilizadas pelo pessoal médico e também óculos de proteção. Essa compra foi feita e não tivemos qualquer influência sobre onde esse material foi entregue, ele já estava pré-destinado, só ajudámos a pagar. Foi entregue ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, ao Garcia de Orta, em Almada e ao São João, no Porto.
Como já tínhamos montada a parte da logística, dentro do movimento Tech4Covid19, conseguimos utilizar o que já tínhamos para apoiar a outra campanha na distribuição do material. Enquanto eles tinham as coisas mais bem tratadas para o Hospital de Santa Maria, nós, através de uma colaboração e que também foi uma das coisas espontâneas que aconteceu com o Clube de Motards de Setúbal, que ajudaram na entrega de material, no Hospital Garcia de Orta.
Como é que o Clube de Motards de Setúbal se junta e o que fizeram?
O Clube de Motards de Setúbal teve conhecimento da nossa campanha e pensaram que também queriam ajudar o Hospital Garcia de Orta a ter acesso a material que pudesse necessitar. Perguntaram se poderiam usar a nossa plataforma para angariar fundos. Dissemos que até poderiam, mas propusemos que se juntassem a nós, divulgassem a campanha entre os seus membros e o dinheiro que angariássemos dentro da rede do Clube Motard de Setúbal, seria aplicado em equipamento para o Hospital Garcia de Orta. Quando viram que havia a possibilidade de comprar direto disseram: “esqueçam a exclusividade do material. Vamos divulgar a campanha pelos nossos membros e esperamos que muita gente adira. Depois estamos disponíveis para implementar na nossa área geográfica”. E foi assim, tornaram-se parceiros da campanha, divulgaram-na e ajudaram a fazer a recolha do material e a entrega no hospital.
Portanto, as máscaras para o Hospital Garcia de Orta chegaram de mota?
Não chegaram de mota, porque as caixas eram muito grandes. Mas chegaram por motards 😊
E depois dessa compra, o que se seguiu?
Depois dessa compra, conseguimos concluir o nosso processo de procurement e seleção de fornecedores de material na China, através de empresas, também startups, do nosso movimento que têm presença na China. Conseguimos encontrar um fornecedor de confiança, com material certificado e fazer a primeira encomenda. Fizemos uma primeira encomenda de 65 mil euros para a compra de máscaras FP2, as tais que podem ser utilizadas por profissionais de saúde.
Uma das coisas que foi muito falada refere-se à dificuldade de encontrar fornecedores de confiança e conseguir assegurar todo o processo …
Há uma linha muito ténue entre quem são fornecedores de verdade e quem são oportunistas. Estamos constantemente a ser abordados por empresas que se dedicam a mil e uma coisas e que, de repente, se apresentam como especialistas em material hospitalar, máscaras, ventiladores e todo o tipo desses materiais, mas que, no fundo, estão só a tentar intermediar negócios de outras empresas, que essas sim, o são. Depois, há o problema grande de confiar no fornecedor chinês. Quando decidimos comprar a alguém cá, não fazemos a mínima ideia de qual é o stock de material que está na China, qual é a qualidade com que é produzido. O que optámos por fazer, como movimento, foi tentar comprar o mais diretamente possível ao fornecedor e com verificação local, na China, da qualidade do material e do processo de produção.
E neste caso, correu tudo bem?
Neste caso correu todo bem. Entretanto fizemos uma segunda compra nesse mesmo fornecedor. Foram 100 mil máscaras, no total [quando esta entrevista foi realizada, no início de abril, o material estava, nesse momento, a caminho de Shenzhen, onde se localizava o fabricante, para Pequim de onde viria, num avião com o apoio da embaixada portuguesa na China para Portugal. A estimativa era que demorasse 5 dias até Pequim e depois – no máximo – mais uma semana até Portugal].
Tendo esta campanha conseguido, praticamente, duplicar o valor, o que vão fazer a seguir? Vão fazer novas campanhas ou outro tipo de colaboração, dentro daquilo que podem e sabem fazer? [na realidade, a campanha mais que duplicou o valor dos 100 mil euros]
Enquanto campanha, ficámos com um excedente de quase 38 mil euros em donativos. Todos estes dados são perfeitamente transparentes, publicamos diariamente um Relatório de Transparência, no site da campanha – stopcovid19.pt. Qualquer pessoa pode ir ver quanto foi angariado, quanto foi comprometido por pessoas e quanto já foi utilizado. Até colocamos lá cópias das faturas, só não divulgamos os nomes dos fornecedores porque, nesta altura, e algumas pessoas não têm noção, mas vivemos em quase ambiente de pirataria mundial. A luta pelos fornecedores, pelos aviões, pelas entregas de material, é gigante. Estamos a tentar salvaguardar, também, a nossa posição…
Aliás, houve acusações públicas de equipamentos desviados, em que um país acusa outro, países que compraram e, de repente, descobrem que foram burlados.
E nós, como um país pequeno, temos ainda mais dificuldade. Porque se nós, como movimento, chegamos a um fabricante, dizemos que queremos 100 mil máscaras e chega a Alemanha, diz que quer 10 milhões, ninguém olha para nós. Portanto, é muito bom termos conseguido este fabricante que é de confiança e por isso também precisamos de tentar manter as coisas relativamente controladas.
Agora, o desafio com estes 38 mil euros é: gostávamos de ir ainda mais além. Já houve tempo para empresas portuguesas adaptarem as suas linhas de produção e começarem a fabricar em Portugal e portanto, gostávamos agora de tentar dar a este dinheiro o destino de comprar material feito em Portugal.
Do ponto de vista mais pessoal, como tem sido conviver com estas duas frentes? Estar como voluntário num projeto que é bastante exigente e ao mesmo tempo manter as responsabilidades enquanto fundador de uma empresa?
A verdade é que tem sido super intenso. Foi mais intenso o início da campanha, talvez as primeiras duas semanas, foram no limite das nossas capacidades. Mas o que é engraçado e que aprendemos como empreendedores, como empresários, em geral, e qualquer outra pessoa que vive debaixo de uma pressão muito intensa no trabalho, é que aguentamos sempre muito mais do que achamos que vamos aguentar. Nos primeiros sete dias e seguramente nos primeiros quinze, foram noites com muito poucas horas de sono. Mas também são muito importantes estes momentos para perceber o que nos move e a verdade é que quem corre por gosto não cansa, como se costuma dizer. E quando sabemos que estamos a fazer isto por uma causa tão importante, superamos qualquer cansaço, falta de horas de sono e tomamos riscos e saltamos procedimentos.
No final disto tudo, o sentimento que fica é de orgulho pelo que conseguimos atingir, mas também pensei: será que fiz a coisa certa, dedicar tanto tempo à causa e não estar tão atento ao que a empresa precisava, desde o início? Mas acho que fizemos as coisas na medida certa. Já temos doze pessoas, tenho sócios e tivemos praticamente quatro pessoas dedicadas em full time à campanha, durante as primeiras duas semanas, mas os restantes continuaram a manter o negócio a funcionar e a preparar o plano de contingência a que estes tempos obrigam.
Esta experiência que estão a ter no Tech4Covid19 e o facto de terem entrado numa área que nem é, do ponto de vista mais literal, o que fazem habitualmente, vai ter algum impacto no que vai ser a GoParity no futuro?
Ninguém fica indiferente ao que está a acontecer agora. Em geral, tanto nas pessoas como nas empresas, acho que é um excelente momento para refundarmos os nossos princípios e os nossos valores. Na GoParity já temos muita sorte: o que fazemos é viabilizar projetos na área da sustentabilidade através de empréstimos, feitos por pessoas ou empresas, a organizações que precisam. O impacto que isto traz é reforçar ainda mais a nossa missão e a convicção de que somos um instrumento que pode ter um papel enorme, se não fundamental, nesta necessidade que há de refundar os princípios da economia. Dar força a iniciativas que sejam sustentáveis nos tempos que virão. Tanto agora ajudá-los a lidar com a crise como no futuro, a serem os negócios do futuro.