Farfetch, a empresa portuguesa onde os ricos fazem compras online
Não é para qualquer um – para qualquer bolso, leia-se – apesar de ser tão democrática quanto a internet pode ser: está á distância de um clique. O que acontece depois desse clique é outra história porque ao chegar a www.farfetch.com entramos no mundo dos artigos de luxo. Exemplos? Usemos os que a Bloomberg citou para explicar que tipo de produtos os consumidores endinheirados encontram no grande centro comercial online que a empresa portuguesa criou: um casaco “leopardo” que custa 8287 dólares ou uns sneakers com preço de 980 dólares. O casaco é Calvin Klein e os sneakers são Gucci e o que José Neves, o nome por trás da Farfetch, percebeu há 10 anos é que a minoria que no mundo procura – e pode comprar – produtos destas marcas e com estes preços não tinha um espaço no grande mundo da internet onde o pudesse fazer. Nasceu assim, em 2007, um projeto que ontem entrou na Bolsa de Nova Iorque com ações a um preço inicial de 20 dólares e cujo valor disparou 35% durante a sessão tendo feito a empresa alcançar o valor de mercado de 8 mil milhões de dólares.
Porque está a Bolsa, onde se jogam sobretudo expetativas futuras, tão entusiasmada com a Farfetch? Um bom ponto de partida para o perceber será o facto de apenas 9% dos bens de luxo estarem disponíveis online. O valor foi apurado num estudo da consultora Bain e a Farfetch usou-o no seu prospecto de apresentação em Bolsa – as pessoas com dinheiro, os consumidores alvo da empresa, compram ainda na sua maioria em lojas físicas. Ou seja, o espaço de crescimento é grande. Sendo que o número atual já é relevante o suficiente para provocar a valorização que ontem, 21 de setembro, se assistiu na sessão inicial da empresa na Bolsa de Nova Iorque. A 31 de dezembro de 2017, data para a qual existem os últimos dados oficiais públicos, a Farfetch tinha 935.772 consumidores ativos, o que representava um aumento de quase 44% face ao ano anterior.
Nem tudo são rosas, mas os espinhos da empresa são bem compreendidos pelo mercado. Vejamos: em 2017 a Farfetch faturou 386 milhões de dólares e teve um prejuízo de 58 milhões. No ano anterior tinha faturado 242 milhões e registado perdas de 53 milhões. Nos primeiros seis meses deste ano os prejuízos continuaram a aumentar – para 68 milhões de dólares segundo um relatório da Bloomberg Intelligence – mas as vendas aumentam ainda mais, 268 milhões no primeiro semestre do ano, mais que em todo o ano de 2016. Lucros não são esperados antes de 2020.
Cerca de 25% das vendas vêem dos Estados Unidos, 34% da Ásia-Pacífico e 40% da Europa. A empresa opera em 12 idiomas – é verdadeiramente um mercado global – emprega 2400 pessoas e em 2017 investiu 400 milhões de euros, parte substancial em investigação e desenvolvimento.
Vendendo produtos de luxo de marcas como Chanel, Valentino ou Balenciaga, a Farfetch define-se a si própria como uma empresa tecnológica e não como uma empresa de retalho ou de moda. O que é, na realidade, factual: nenhum dos produtos à venda no seu “centro comercial” é seu – ela é a imobiliária que os acolhe e que fica com uma percentagem das vendas lá realizadas. Mas, mais do que isso, a empresa está interessada em tornar-se o parceiro das marcas de luxo na construção das suas lojas online através de uma solução de tecnologia dita “marca branca” – Farfetch Black & White -, no sentido que pode ser customizada a partir de uma base para os vários tipos de clientes. Recentemente, a Farfetch fez também uma parceria com Gucci para oferecer um serviço de entrega no próprio dia em 18 cidades: quem compra camisolas a 1400 dólares aprecia não ter de esperar.
Falta ainda falar de investidores. De 2010 a 2015, a empresa foi seis vezes ao mercado à procura de investimento – e das seis vezes teve resposta positiva num total de mais de 390 milhões de dólares angariados. A entrada no capital, em 2015, do fundo russo DST Global, que investiu mais de 80 milhões de dólares e fez com que a Farfetch ultrapassasse os mil milhões de dólares de avaliação de mercado e alcançasse o estatuto de unicórnio, esse ser mítico que povoa o imaginário das startups. O DST está presente também em empresas como Facebook, Twitter, Airbnb e Spotify – é o campeonato dos grandes. Em 2017 teve lugar um novo investimento na empresa, desta vez do grupo chinês JD: foram mais 397 milhões de dólares a pensar na abordagem ao mercado da China.
O e-commerce representa em Portugal 3 a 5 % das vendas globais. Não é muito, mas o valor está a crescer. Segundo números divulgados esta semana por Bernardo Correia, country manager da Google em Portugal no evento de lançamento do E-Commerce Experience, são números que comparam com os 19% do Reino Unido – país que lidera as vendas online na Europa – e com os 29% da China, cujo comércio moderno já nasceu online. Não é por acaso que um dos principais players deste mercado, a Alibaba de Jack Ma é oriunda da China onde nasceu quando tudo apontava no sentido inverso (vale a pena ouvir Jack Ma a falar sobre este tema no Fórum de Davos de 2018). E, claro, há “o” player incontornável chamado Amazon que não será exagero dizer “inventou as lojas online há quase 25 anos e é hoje um gigante do setor. No segmento dos produtos de luxo, o concorrente da Farfetch chama-se Net-a-Porter e é italiano. Tem números de maior dimensão, receita de 2,1 mil milhões de euros em 2017 e sim, já apresenta lucros, 51 milhões no mesmo ano.
A forma como o comércio vai evoluir nos próximos anos é uma das grandes forças transformadoras da economia mundial – e a Farfetch está no centro desse furacão. Não é por acaso que também detém lojas físicas em Londres – comprou uma insígnia com história na capital britânica, a Browns – é porque precisa. Os consumidores continuam a gostar de ir às lojas físicas, continuam a sentir segurança na sua existência e continuam a precisar, de vez em quando, de apenas tocar nos produtos que querem comprar – só não precisam é que isso os impeça de comprar quando querem, onde querem e de receber o que desejam o mais rapidamente possível. E esse é o grande negócio onde a Farfetch já espetou a sua bandeira.