#Block Friday
Este artigo começou por causa de um número que parece mentira mas não é. Desde 2006, segundo a contagem apurada pelo site Black Friday Death Count, 12 pessoas morreram e mais de 117 ficaram feridas em incidentes relacionados com a Black Friday. Há uma semana eram 108 feridos, o que significa que a mais recente Black Friday contribuiu para o aumento.
Já era razão suficiente para que se discutisse o "fenómeno" Black Friday, mas, nos últimos meses, o debate sobre o futuro do planeta elevou a discussão a outro nível. E, este ano, o calendário brinda-nos com uma sequência de datas que representam conceitos opostos: numa semana, vive-se o primado do consumo, com a realização na última sexta-feira de novembro (e no fim de semana que se lhe segue) da Black Friday e, na semana seguinte, com a Cimeira do Clima, em Madrid, onde líderes mundiais e organizações cívicas e ambientais se juntam para discutir soluções para o planeta.
A racionalidade da Black Friday tem sido discutida quer ao nível dos comportamentos de consumo quer ao nível da própria rentabilidade para as marcas que a promovem. Algumas cadeias de lojas já se deram ao trabalho de fazer as contas e perceberam que é possível terem os mesmos objetivos de vendas sem degradarem as margens por causa do desconto "apenas" naquelas 24 horas de novembro.
Na Europa, vários países, a começar por França, mas também em Inglaterra e na Alemanha, estão a repensar o evento – em França há inclusive uma proposta para o impedir. Mas, mesmo sem leis, há cada vez mais pessoas a promoverem o #BlockFriday, que significa basicamente recusar a corrida às lojas por causa dos descontos imperdíveis.
Vamos olhar de volta para a América que, a par com a Chima, é um mundo à parte quando se fala de consumo. Este ano, a National Retail Federation estimou que 114,6 milhões de americanos fossem às compras na Black Friday e que mais de 165 milhões o fizessem no conjunto dos três dias do fim de semana que é também de feriado pelo Thanksgiving e que termina, já agora, na Cyber Monday, que foi ontem. É mais de metade da população adulta do país às compras por causa dos anunciados descontos. A três semanas do Natal.
É verdade que cada vez mais destes consumidores estão a comprar online, mas não impede que as lojas se encham de multidões que se acotovelam e, apesar do reforço de segurança e das equipas de paramédicos de vigilância, isso não tem impedido que todos os anos haja registos de pessoas feridas por irem às compras, a somar às situações-limite de que resultaram vítimas mortais.
Segundo as contas que o Black Friday Death Count tem vindo a fazer desde 2006, já houve tiroteios, pessoas esmagadas na multidão, esfaqueamentos, ataques com gás pimenta. Os Estados Unidos lideram a lista em matéria de incidentes mas também há registos em Inglaterra, no Canadá, na África do Sul. Há pessoas feridas por causa de estarem a disputar um mesmo produto. Há pessoas feridas na entrada das lojas porque querem ser as primeiras a entrar. Há distúrbios nos parques de estacionamento.
Nos Estados Unidos, mais de metade dos incidentes decorre em lojas da Walmart que é também a cadeia de retalho que mais pessoas atrai e concentra (3,4% do número total de consumidores em 2018, o dobro do seu concorrente direto, a Target).
A Hustle, plataforma de newsletters sobre negócios e tecnologia, foi à procura de explicações académicas para este tipo especial de violência que tendo como pano de fundo apenas um desconto no preço e encontro. Uma professora da Universidade de Indiana fez um inquérito a centenas de consumidores de Black Friday e concluiu que a agressividade que fica patente nestes saldos decorrer de “sentimentos de desigualdade”. Por desigualdade entenda-se percepção de injustiça porque alguém está a retirar o que outra pessoa considerou ter direito (exemplo disputa por um produto) ou porque a loja não está a honrar o preço ou condições anunciadas.
Outra académica, Bridget Nichols, professora assistente de marketing e gestão desportiva na Northern Kentucky University, apontou a ideia de escassez como o principal ativador de agressividade. Se há escassez de um produto, os consumidores atribuem-lhe mais valor e, na Black Friday, tudo tem a ver com escassez, de tempo e de produto. Isso acelera a competição e divide os compradores entre vencedores e derrotados.
Nos Estados Unidos, este ano, a maior parte das compras foi feita online (no ano passado, em Inglaterra também já tinha sido). Para as lojas físicas e para as cidades que contam com elas como elemento vital na economia e na comunidade, não são notícias assim tão boas – mesmo que permitam reduzir os episódios de falta de civismo ou mesmo de violência. Não é só o propósito de encher as lojas que se esbate – quem mais ganha nas compras online são gigantes tecnológicos como a Amazon, não as lojas de rua. Por outro lado, o impacto ambiental causado pelas entregas pós-compra online (e pelas devoluções que se estima sejam em média 30%) é significativo e contra-corrente com os apelos para um consumo sustentável.
Em França, a discussão sobre estes impactos foi já um pouco mais longe e uma comissão parlamentar apelou à proibição do evento considerando que promove o sobre-consumo. Também os ativistas ambientais se manifestaram contra este dia junto a um centro de distribuição da Amazon nos arredores de Paris.
Ao protestos não se limitam a França. Também em Inglaterra os movimentos cívicos, nomeadamente de jovens e associados às campanhas ambientais também se fizeram ouvir. Ouvem-se invocando dois argumentos poderosos: é preciso impedir a febre de consumo para defender o planeta e também é necessário olhar para a rentabilidade das empresas que cortam margens para vender mais num único dia do ano.
No Reino Unido, o mercado mais próximo do americano, a Black Friday tem cerca de 10 anos de existência. Começou por causa da abertura de descontos da Amazon aos consumidores britânicos. O evento chegou depois a grandes mercados como França e Alemanha, mas com menos impacto. Mesmo em Inglaterra algumas cadeias de lojas estão já a dar um passo atrás. Marcas como Asda, o braço britânico da Walmart, ou retalhistas de eletrónica como AO World Plc e Dixons Carphone Plc preferem planear promoções com os fornecedores de forma mais diluída no tempo.
Há outras abordagens. Em Lyon, uma marca de roupa ética, a WeDressFair, fechou pelo segundo ano a loja e o site na Black Friday e, em vez disso, disse aos consumidores que podiam trazer calças rasgadas ou camisas sem botões para serem arranjadas.
A ministra da Ecologia francesa foi também uma das vozes críticas este ano. “Não podemos pedir ao mesmo tempo uma redução na emissão de gases e apelar a um frenesim de consumo como este”, afirmou Elisabeth Borne.Uma ideia partilhada também pelo ministro português do Ambiente que classificou a Black Friday como "um contrassenso".
Texto editado a 5 dezembro às 17h00
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