Rui Paiva: “Quando se desenha uma empresa tem de se desenhar a saída. Porque, se não, não se tem um plano”
No contexto de uma parceria com a Casa de Investimentos sobre as grandes ideias que vão mudar em 2021, estivemos à conversa com Rui Paiva. O empreendedor acredita nos avanços tecnológicas causadas pela COVID-19, mas duvida que todos tenham apanhado o comboio com a mesma facilidade e lembra as desvantagens que isso teve para quem tenta entrar agora no mercado.
Sobre arriscar no mundo dos negócios, diz que nós “somos os filhos daqueles que têm medo”, já que os corajosos ficaram lá para trás “há 500 anos quando se meteram em barcos”. Por isso, frisa a urgência em fazer diferente e criar valor acrescentado, num mundo que só pode evoluir pelas mentes mais qualificadas e se houver investimento na educação e na cultura.
2020 vai ser um ano que vamos recordar como um ano de viragem nas nossas vidas e como um ano da primeira pandemia moderna e global. Olhando para os próximos anos, quantos anos é que acha que nós acelerámos as mudanças que já vinham em curso?
Esta foi a primeira vez que houve uma pandemia que fez com que toda a gente se adaptasse ao mesmo tempo. Porque normalmente estas coisas acontecem, mas nem todos mudam. Pela primeira vez toda a gente parou, toda a gente percebe o que vai ter de ser mudado. Podemos falar a mesma a linguagem e, dentro do mau, isso é a coisa positiva que vai acontecer. Pela primeira vez toda a gente se vai aperceber de que parte das mudanças que aconteceram vão ser aceites.
É uma mudança global?
Não sei se foi só com uma elite. A grande parte das pessoas não mudou, porque não tem as condições para isso. Não sei se é assim tão transformacional no sentido que de quem fez já fazia: acelerou, não mudou. Quem já estava dentro do sistema acelerou verdadeiramente. Quem estava fora do sistema não é claro que tenha entrado dentro do sistema. E isso, sim, vais ser transformacional: quando essas pessoas entrarem dentro do sistema. Entrando as empresas dentro do sistema, estas pessoas têm de ser puxadas. Vai ter de ser nessa segunda derivada.
Grande parte destas pessoas, sendo empregadas destas empresas, vão ter de trabalhar de uma forma diferente. E as empresas estão a tentar sobreviver nessa forma diferente. Sendo que há muitas empresas que são físicas, como os restaurantes. E nessas o objeto é também social, as pessoas encontrarem-se, lado a lado. Tenho mixed feelings sobre isso. As empresas que quiseram manter-se vivas tiveram de acelerar a sua digitalização.
Quais foram as boas surpresas?
Para mim foi um ano bom. Trabalho em tecnologia e, como as pessoas precisaram da tecnologia, os negócios dispararam. Vamos crescer a dois dígitos. Nós todos tínhamos de viajar muito pelo mundo, porque os clientes queriam-nos de presença física. Gastávamos imenso dinheiro, tempo, e as horas dentro do avião não eram produtivas.
Hoje em dia não fazemos nada disso. Tornámo-nos muito mais eficientes e, por estranho que pareça, também eficazes. Gastávamos provavelmente uns 10 milhões por ano em viagens e estadias, que [em 2020] não gastámos. Foi dinheiro que libertámos, que nos permitiu fazer outras coisas. Claro que uma parte passamos aos clientes, mas outra parte fica para nós e podemos investir e criar valor, mais emprego. É possível fazer coisas que pensávamos que eram impossíveis. Quando “isto” abrir não vamos voltar ao ponto zero, mas acho que 50% já fica feito. A história do global era um global físico e agora é um global muito mais digital.
Isso democratizou a forma como as várias empresas podem aceder aos mesmos mercados?
Não, pelo contrário. Porque quando chegou esta fase nós vínhamos do físico e o físico é relacional. Temos de conhecer as pessoas para acreditar, para nos sentirmos confortáveis, para perceber com quem vamos gastar o nosso dinheiro. E quando passamos para uma coisa digital, a confiança continua a ser importante e o digital não nos trouxe a confiança. Trouxe-nos a facilidade de chegar, mas a confiança não existe.
Para empresas a quem aconteceu isto e tinham as relações, como é o nosso caso, foi espetacular. Porque os outros, que podiam chegar e fazer a diferença, não conseguem porque só estão no digital. Aqueles que eram os attackers não conseguiram.
Esta vivência fez-nos confiar mais ou menos na tecnologia?
Acho que nos fez confiar mais, porque tinha de ser. Mas na verdade existe muita insegurança. Isto não é um mundo seguro. Mas as pessoas também fazem coisas diferentes. Adaptámo-nos. Eu, por exemplo, quando vou fazer compras uso um cartão com pouco dinheiro, porque existe a probabilidade grande de me tirarem dinheiro da conta. Acho que temos menos barreiras, porque tinha de ser e o ter de ser ajuda muito.
Houve uma mudança relacionada com o teletrabalho. O que nós vamos viver daqui para a frente acentua uma divisão entre dois mundos: o mundo que pode trabalhar remotamente e o mundo que só o pode fazer fisicamente?
Sim. Por exemplo, uma vez fui ao supermercado durante isto da pandemia e a senhora que estava na fruta era mais velha. E eu disse “Você não tem medo?”, e ela disse “Eu tenho de trabalhar, eu tenho de comer. Para nós não existe pandemia”. É verdade. Aquele negócio nunca pode ser digital.
Mas essa é uma visão do mundo. Há outra visão do mundo que é: há gente que está sentada na Amareleja ou num vilarejo na Índia que pode, com um computador com rede, entrar no sistema e trabalhar. Estas história da desertificação do interior podia ser resolvida assim. Mas leva-nos àquele conceito de que é preciso ter formação, é preciso estar preparado. Portanto também não cai assim do céu.
Como é que vê a possível colaboração entre PMEs mais tradicionais com startups, muito mais universitárias, muito tecnológicas e de uma geração mais nova?
Como uma coisa normal, é complementar. É quase como dizer que uma empresa grande industrial tinha de ter um departamento para chegar a uma solução. É muito melhor não ter e que exista uma comunidade que vai tentar ter um caminho e eu colaborar com ela. É quase como fazer um outsourcing de um conjunto de coisas com risco, o que é bom. Estando dentro da própria indústria, se conseguir ou não conseguir continuo a ter o meu emprego. Assim não: eu faço com base em risco-sucesso. Portanto, faz-se em comunidade. Eu acho isso muito engraçado.
O próprio Estado tem um problema da dimensão do Estado. Acho que o Estado até devia dar a hipótese às pessoas que são empregadas do próprio Estado, tendo em conceito, ser uma coisa magra porque o dinheiro deve estar na posse dos cidadãos, colocar estas pessoas em startups e serem quase os risk takers de uma coisa que tem um cliente. E a partir de aí acrescentar valor para que eles próprios possam criar o negócio deles vendendo a mais pessoas, outros sítios, outras regiões.
Acho que o risco é a parte bonita destas coisas todas. Nós dizemos sempre com muita piada que as pessoas que gostavam do risco foram-se embora há 500 anos quando se meteram nos barcos. Essa gente foi e o mundo mudou. E eu acho que isso faz parte.
Naturalmente somos avessos ao risco.
Pois somos! Mas na história não fomos! Aos que parece os que tinham medo ficaram cá e agora somos filhos dos que têm medo.
No próximo ano vamos ter o desafio da transformação digital.
Quando as pessoas falam em digitalização é um chavão. E gestão? As pessoas sabem gerir? Sabem o que é a delegação de competências? Sabem o que é avaliar? Sabem o que é performance indicators? Há um conjunto de coisas fundamentais para ter um negócio que permite às pessoas crescerem e desafiarem-se para depois irem pelo caminho natural. Eu nem consigo dissociar digitalização e gestão.
O tema PMEs para mim não é relevante. O que me interessa é valor acrescentado bruto ou não valor acrescentado bruto. Porque há empresas que não fazem sentido existir, porque são negociantes: compram uma coisa, vendem uma coisa. Isto é o mercado português. O valor acrescentado bruto é o que define o valor de uma empresa, porque é aquilo que é diferenciador, aquilo que o outro quer comprar, porque não existe no mercado, é uma valência única. Temos de mudar esse paradigma de sermos os comerciantes para sermos os que acrescentam valor. Porque a riqueza só é feita por quem acrescenta valor. E essa gente é a gente que é importante. Os outros são uma forma de viver. Em vez de se empregarem por conta de outros são gestores, mas de uma coisa que transaciona, do tipo: com batatas, ponho-lhe 5 euros e vendo a outro senhor.
Onde é que acha que existem empresas mais bem posicionadas para acompanhar esta evolução?
Nos sítios onde têm pessoas com maior formação.
Não é o setor, são as pessoas?
Isto é a convergência de duas coisas: uma máquina tecnológica e o brain. Por exemplo: quando nós falamos de machine learing e inteligência artificial é muito brain. A inteligência artificial é a transposição daquilo para a análise dos dados. Estas coisas vão nascer à volta disso.
Noutro dia estava numa reunião com um senhor que dizem que vai ser o futuro presidente da Alemanha e ele dizia-me que em Nuremberga iam abrir uma universidade XPTO com campus tecnológico físico e que iam fazer um fundo de investimento. E eu disse que não via isso diferente de nada. Todos têm lá uma linha de crédito, parece-me tudo igual. Porque é que eu vou para Nuremberga? E disse-lhe: “Porque é que você, sendo alemão, não tem uma coisa tão espetacular quanto, tendo um conjunto de cidades para se gerirem, agarrar nesse dinheiro e dar um conjunto de projetos para resolveem um problema, pagando, e dando um produto e um cliente?”. Porque é disso que as startups precisam: um produto e um cliente. E ele disse que nunca se tinha lembrado disso. É que é sempre “tipo coisas para fazer cenas”. Eu digo muitas vezes isto. Mas cenas não dá para nada, cenas não se vendem [risos].
Quem está mais bem posicionado, para além de ser quem tem as melhores qualificações, são empresas que já existem ou acha que isto vai ser um território com empresas a surgirem que hoje não conseguimos imaginar?
Se olharmos para as empresas na bolsa, o topo são empresas de tecnologia que têm uns 50 anos. E elas são tão grandes que comem tudo à volta. Nesta história dos M&As [Mergers and Aquisitions – Fusões e Aquisições] compram, compram, compram. Depois quando aquilo está mais gordinho uma delas chega e compra tudo. Portanto está a chegar a uma dimensão em que não dão espaço para ninguém crescer.
As farmacêuticas é a mesma coisa. Por exemplo: se uma startup inventa uma vacina para a SIDA, mata um conjunto de farmacêuticas que vendem milhões de medicamentos caríssimos para perpetuar a vida das pessoas todas. Não lhes interessa nada uma vacina do ponto de vista de negócio. Este negócio está a ser muito similar.
Ou os reguladores mudam o conceito ou vai haver empresas que vão fazer coisas disruptivas, mas vai haver outras tão grandes, que vai colapsar tudo nelas. Portanto vão ser linhas de negócio dentro destas empresas.
Isso torna-se menos aliciante, sobretudo para os mais jovens, que olham para as startups muito com o imaginário de serem o next billionaire?
Não, porque as pessoas acabam por fazer a empresa com dois racionais: pensar em ser grande ou pensar em que se vai chegar a um limite e ser comprado. Quando se desenha uma empresa tem de se desenhar a saída da empresa. Porque se não, não se tem um plano para a empresa.
Se eu hoje em dia começasse uma empresa, se calhar começava por olhar para aqueles que eram os grandes compradores e para a peça que lhes faltava. Ia trabalhar e fazer a peça para eles me comprarem. Ou então pensar que vou fazer essa peça e ter a coragem de só eu ter essa peça, sendo tão importante que não quero que ninguém me compre, mas na esperança de que as outras não consigam fazer a peça.
É como nós, seres humanos: temos de pensar que vamos morrer um dia. Temos de pensar na nossa vida qual é a altura importante para ganhar dinheiro e qual é a altura importante para gastar dinheiro. Porque se fizermos tudo descoordenadamente ganhamos o dinheiro muito velhinhos e temos a vida miserável no início.
Com a pandemia as pessoas achavam que iam ter muito mais tempo. E a parte do mundo que conseguia trabalhar em casa diz que trabalhou muito mais. A promessa não se cumpriu. Vai ser sempre adiada?
Entre o que diz e o que fez, não sei. Não acho que trabalhou muito mais. Claro que houve uma altura num pico de adaptação em que se teve de trabalhar mais porque também se trabalhava em casa a ajudar os filhos, por exemplo. E isso não liberta uns, mas liberta muitos. Há muitos que ficam ocupados pela disrupção, mas há muitos que ficam desocupados por essa mesma disrupção.
Eu faço muitas analogias. Há décadas, os homens é que trabalhavam e as mulheres estavam em casa. Até que houve uma altura, e bem, em que as mulheres começaram a trabalhar. E quando começaram a trabalhar estamos a falar do dobro da capacidade de trabalho. E nós adaptámo-nos, conseguimos arranjar o dobro do trabalho para todos. E agora é o dobro – homens e mulheres – e muito mais gente, e nós estamos a conseguir.
É uma coisa que não me preocupa muito. Já morreu o Engels, o Marx, o Kant… Já morreu tanta gente famosa, que nunca ninguém iria fazer coisas melhores do que eles, e fazem sempre! Portanto não me preocupo com o seguinte. Existe sempre alguém que é muito melhor. Até porque pode aprender com o que os outros fizeram e fazer sempre melhor.
Hoje, aquilo que se separa um país de ter sucesso ou insucesso está menos ligado a ter recursos naturais ou até dinheiro, mas está muito mais indexado à capacidade de se conseguir liderar em áreas muito específicas. Como vê Portugal neste mapa mundo?
Não acho isso. Acho que os recursos naturais continuam a ser a coisa mais decisiva. A China e a Índia são as pessoas, porque são muitos. Para a Índia, que se posicionou nos serviços, ter muita gente é um fator crítico decisivo. A Noruega é a Noruega porque tem lá petróleo e não porque são uns iluminados. Os recursos naturais são importantes, portanto era bom termos.
Não tendo, temos de acelerar mais o diferenciador e o diferenciador passa pelas competências das pessoas. E isso passa por educação e cultura. Educação na base, por exemplo na Coreia do Sul escolheram a tendência que achavam que fazia sentido há 30 anos – pensaram que o caminho era a tecnologia e isso é espetacular. E são povos que são educados no sentido de que o respeito pelos outros é importante. Porque nós, os latinos, temos aquela coisa de “não é meu, não tenho de me importar”. E isso marca a diferença. O sentido de responsabilidade é muito importante.
Uma vez, numa cidade dinamarquesa, estavam a falar do Presidente da Câmara, e ele disse que tinha tido 2% dos eleitores. E perguntaram-lhe como é que era possível. E ele respondeu: “não houve maioria, portanto os partidos todos juntaram-se e escolheram-me porque achavam que eu tinha mais competências”. Isso é impensável em Portugal! Nós nunca pensamos no todo, nós nunca pensamos na responsabilidade do dinheiro que gastamos.
A educação e a cultura são importantes e temos de ter a convergência dessas duas vertentes. É preciso termos mundo.
A Zara é na Galiza! É a maior empresa de vestuário do mundo. É uma coisa impensável. A Galiza não é dos sítios mais ricos de Espanha. Portanto é possível. Tudo é possível.
Deixa-o otimista pensar que a nossa geração abaixo dos 30 já tem bastante mais mundo?
Sim, não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. E também acho que a solução para Portugal para os próximos anos não pode ser desenhada por quem levou Portugal até aqui. Porque os que levaram Portugal até aqui trouxeram isto a um charco. Temos uma dívida impensável e como é que esta gente acha que vão desenhar o futuro? Na premissa que têm de destruir o atual? Não podem! Não estou a dizer que não fizeram com a melhor das vontades, mas não conseguiram. Esta gente que tem 20 ou 30 anos tem de desenhar o que vai ser isto. E os outros têm de deixar que eles desenhem, porque eles é que vão viver esse mundo.
2020 mudou muita coisa. Se tivesse de escolher 3 coisas que a tecnologia poderá ter mudado para sempre a partir deste ano quais é que escolheria?
Não escolhia nada. Mudaram foi comportamentos. A história do acesso a tudo em todo o lado é a coisa principal, mas também já existia. O comportamento é que é a coisa mais relevante.
E isso o que é que muda?
Eu sentia-me mal em não ir ao escritório um dia e já perdi isso. Há dias em que vou ficar mesmo em casa e não me sinto mal por isso. Tinha quase a certeza de que em alguns dias ficando em casa ia conseguir fazer mais mas sentia-me mal comigo mesmo. Agora acho que não vou sentir. Em termos de comportamentos mudou-se significativamente. Não vai ficar tudo impregnado. Vai ficar parte e depois, com o tempo, outras vagas virão de outras coisas, que esperamos que não sejam pandemias.
- Veja o The Next Big Idea no YouTube aqui.
- Subscreva a newsletter Next para receber histórias do mundo da inovação e das empresas no seu e-mail.
- Siga o The Next Big Idea no Instagram