China, EUA ou Europa, quem vence a corrida à IA?
por Gabriel Lagoa | 3 de Fevereiro, 2025
A China abalou o domínio dos EUA com um modelo de inteligência artificial low-cost da DeepSeek, enquanto Bruxelas prepara um novo plano de 800 mil milhões de euros para não ficar para trás na revolução tecnológica.
A corrida pela liderança global em inteligência artificial (IA) entrou numa nova fase. Os Estados Unidos, que até agora dominavam o setor com empresas como a OpenAI, com o conhecido ChatGPT, enfrentam um novo desafio vindo do Oriente. Donald Trump, que regressou à Casa Branca este mês, apresentou como uma das primeiras medidas um plano de 500 mil milhões de dólares para criar infraestrutura ligada à inteligência artificial, numa tentativa de manter a hegemonia norte-americana no setor. Mas a China não ficou parada e, em apenas uma semana, duas empresas do país – a DeepSeek e a Alibaba – apresentaram modelos de IA que prometem fazer frente aos gigantes americanos por uma fração do custo.
No meio desta disputa sino-americana, a Europa tenta encontrar o seu lugar. A Comissão Europeia apresentou esta semana a Bússola para a Competitividade, uma estratégia que prevê um investimento anual de 800 mil milhões de euros – cerca de 5% do PIB da União Europeia – para recuperar terreno face aos Estados Unidos e à China na área da inovação e tecnologia.
O fenómeno DeepSeek abala Wall Street
A tecnológica chinesa DeepSeek, uma startup fundada em 2023 em Hangzhou, provocou um autêntico tombo nos mercados financeiros ao apresentar um novo modelo de IA que faz frente ao ChatGPT, o DeepSeek R1. Escreve a norte-americana PBS que o chatbot tornou-se a aplicação gratuita mais descarregada na App Store da Apple, superando todas as expectativas e gerando um debate intenso sobre a competição económica e geopolítica entre os Estados Unidos e a China.
O que distingue verdadeiramente o DeepSeek dos seus concorrentes é a eficiência de custos. A empresa chinesa afirma ter desenvolvido o seu modelo por menos de 6 milhões de dólares, um valor que representa uma fração do investimento feito pelas empresas americanas. Esta revelação agitou as águas em Wall Street, com a Nvidia – principal fabricante de chips de IA – a perder cerca de 600 mil milhões de dólares em valorização num único dia.
O impacto foi tão significativo que levou a Nvidia a emitir um comunicado, citado pela PBS, onde elogia o trabalho da DeepSeek como “um excelente avanço na IA” que aproveitou “modelos amplamente disponíveis e computação totalmente compatível com os controlos de exportação”.
Um elogio amargo
No entanto, o que ao início soou como um elogio, mais tarde se tornou numa suspeita de uso ilegal de dados. Segundo o Financial Times, a “OpenAI afirma ter encontrado evidências de que a DeepSeek utilizou os modelos proprietários da empresa norte-americana para treinar o seu próprio concorrente de código aberto, numa altura em que crescem as preocupações sobre uma potencial violação de propriedade intelectual”.
O jornal acrescenta que “a técnica é utilizada por programadores para obter um melhor desempenho em modelos mais pequenos, aproveitando os resultados de modelos maiores e mais capazes, permitindo-lhes assim alcançar resultados semelhantes em tarefas específicas a um custo muito inferior”. A questão é que, ao utilizar esta técnica para construir um modelo concorrente, a DeepSeek estará a violar os termos e condições dos serviços da OpenAI.
Isto coloca a empresa de Sam Altman numa posição que faz lembrar a célebre expressão “ironia do destino”. A OpenAI, que já foi alvo de críticas e processos judiciais por alegadamente violar os direitos de autor de jornais – como o The New York Times – ao usar os dados das publicações para treinar os seus modelos de IA, está agora numa posição semelhante.
Como funciona o DeepSeek R1?
O sucesso da startup chinesa destaca-se no contexto das restrições impostas pelos EUA sobre a exportação de chips para a China. Contrariamente ao esperado, estas sanções têm estimulado a inovação, levando a empresa a desenvolver soluções mais eficientes, ou, noutras palavras, a fazer mais com menos.
O DeepSeek R1 tem sido elogiado pela sua capacidade de lidar com tarefas complexas de raciocínio, particularmente em matemática e programação. O modelo tem uma abordagem semelhante à utilizada pelo ChatGPT o1, que lhe permite resolver problemas processando as questões passo a passo.
No entanto, a revista internacional MIT Technology Review, destaca que o que mais surpreendeu no R1 foi a sua simplicidade de engenharia. “A DeepSeek apostou em respostas precisas em vez de detalhar cada passo lógico, reduzindo significativamente o tempo de computação enquanto mantém um elevado nível de eficácia“, explica um investigador da Microsoft à revista.
Alibaba não fica atrás
Enquanto o DeepSeek dominou as atenções da semana, outro gigante chinês decidiu mostrar os seus trunfos. A tecnológica Alibaba lançou uma nova versão do seu modelo de inteligência artificial Qwen 2.5, que alegadamente supera o GPT-4 da OpenAI, o Claude 3.5 Sonnet da Anthropic e o Gemini 2.0 Flash da Google em várias avaliações de compreensão de vídeo, matemática, análise de documentos e resposta a perguntas, segundo o TechCrunch.
O lançamento da nova versão do modelo de IA da Alibaba reflete a pressão que a ascensão meteórica da DeepSeek nas últimas três semanas exerceu não só sobre os rivais estrangeiros, mas também sobre a sua concorrência interna, com novos players à procura de destronar a OpenAI no pódio da corrida internacional à IA.
O “momento Sputnik”
Donald Trump, no seu primeiro dia de regresso à Casa Branca, apresentou um plano de 500 mil milhões de euros para criar infraestrutura ligada à inteligência artificial, uma parceria formada pela OpenAI, Oracle e SoftBank. A nova entidade, Stargate, vai começar a construir centros de dados e a produção de eletricidade necessária para o desenvolvimento de IA no Texas, segundo a Casa Branca. Será que o poder financeiro determinará quem vence esta corrida tecnológica?
Citado pela PBS, o venture capitalist Marc Andreessen, cofundador da Andreessen Horowitz ou a16z, uma das principais VCs dos EUA, foi mais longe e comparou o surgimento do DeepSeek R1 ao momento Sputnik, referindo-se ao lançamento do satélite soviético em 1957 que desencadeou a corrida espacial durante a Guerra Fria.
Andreessen, que aconselha Trump em política tecnológica, tem alertado que uma regulamentação excessiva da indústria de IA pelo governo americano irá prejudicar as empresas americanas e permitir que a China avance. Será que vamos ver uma mudança na política de IA norte-americana, em que se privilegia o progresso face à segurança?
Europa à procura do seu caminho
Enquanto Estados Unidos e China disputam a liderança, a Europa tenta não ficar para trás. A Comissão Europeia, pela voz da presidente Ursula von der Leyen, apresentou há dias a Bússola para a Competitividade, uma estratégia inspirada no Relatório Draghi que visa recuperar terreno na inovação e competitividade.
“Só 13% das nossas empresas recorrem a inteligência artificial, uma em cada sete. E isso tem de mudar”, declarou von der Leyen, citada pelo ECO. A estratégia europeia inclui a criação de “fábricas de IA” que disponibilizarão supercomputadores às empresas para desenvolverem e treinarem os seus modelos.
A Comissão planeia ainda criar um novo Conselho Europeu de Investigação sobre IA e formalizar a Estratégia para uma União Europeia dos Dados. O investimento será também direcionado para áreas como supercomputação, semicondutores, IoT, genómica, computação quântica e tecnologia espacial.
A Comissão Europeia planeia também uma simplificação dos processos administrativos. Durante a apresentação da Bússola para a Competitividade, Von der Leyen reconheceu as dificuldades enfrentadas pelas empresas europeias face à complexidade burocrática e aos morosos processos de licenciamento. Para dar resposta a este problema, Bruxelas vai apresentar uma proposta, que pretende simplificar as obrigações de reporte das empresas, especialmente nas áreas da sustentabilidade e finanças sustentáveis.
Riscos e oportunidades
Para alguns especialistas, o surgimento do DeepSeek pode representar uma oportunidade para a Europa. Lucie Aimée Kaffee, responsável pela política da UE na Hugging Face, citada pelo Politico, sugere que a Europa pode competir em “eficiência, especialização e desenvolvimento responsável de IA” com modelos “pequenos” como o DeepSeek.
No entanto, o modelo chinês também levanta preocupações significativas. Utilizadores notaram que o chatbot evita discutir tópicos sujeitos ao regime de censura do Partido Comunista Chinês, como o massacre de Tiananmen em 1989. Além disso, a política de privacidade da empresa revela que são recolhidos padrões de digitação dos utilizadores.
A Comissão Europeia está consciente destes desafios e planeia uma série de medidas para fortalecer o ecossistema europeu de IA. Entre elas, destaca-se a criação de um regime único numa base de adoção voluntária para harmonizar as regras do mercado interno para startups. Von der Leyen quer ainda que a fiscalidade na UE seja mais equilibrada para facilitar o crescimento das empresas emergentes.
Qual o futuro da corrida à IA?
A corrida global pela liderança em IA entrou claramente numa nova fase. O surgimento do DeepSeek demonstra que o domínio americano não é inevitável. A ascensão da startup chinesa sugere que as principais empresas europeias, como a francesa Mistral, a alemã Aleph Alpha e muitas outras empresas de menor dimensão, também poderão ganhar terreno na corrida à IA, possivelmente até com menores investimentos.
Enquanto os Estados Unidos apostam no poder financeiro e a China demonstra uma surpreendente eficiência em custos, a Europa procura um caminho próprio através de uma abordagem mais regulada e centrada em valores. Uma coisa é certa: como afirmou von der Leyen, “está em curso uma corrida para liderar a IA. É indubitável”.
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