Masterclass com Daniela Braga: Desafios a superar numa startup

por The Next Big Idea | 16 de Maio, 2023

Daniela Braga é fundadora e CEO da Defined.ai, empresa líder na área da Inteligência Artificial. Linguista de formação, percebeu rápido que as Línguas são também uma “forma de programação”. Hoje, a sua empresa gera dados altamente fiáveis, escaláveis e em múltiplas línguas, capazes de “treinar” máquinas para ler, interpretar e relacionar informação autonomamente. Mulher, imigrante, mãe e empreendedora a solo, partiu sempre em desvantagem, mas não deixou que isso a condicionasse. É isso que a torna também a pessoa ideal para uma masterclass sobre os desafios da vida como founder.

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De cientista a founder

Daniela Braga licenciou-se em Letras e Linguística, mas é hoje fundadora e CEO da Definded.ai, uma empresa líder na área da Inteligência Artificial. “O meu percurso é a prova de que é possível, com muita tenacidade e persistência, reinventar-nos constantemente”, diz a empreendedora que lia Eça de Queiroz aos dez anos e que encontrou na literatura a sua primeira forma de viajar.

Decidiu seguir a paixão pelas Línguas, apesar de muitos lhe vaticinarem que seria uma área com menos hipóteses de glória. “Mas quando há paixão o sucesso vem porque adoras o que fazes”, diz-nos. Assim, ao acabar a licenciatura foi atraída por uma bolsa na Faculdade de Engenharia do Porto, que à data procurava um linguista para desenvolver o primeiro sistema de síntese da fala em português europeu para cegos. Estávamos no ano 2000 e bastaram três meses para Daniela Braga começar a produzir os primeiros artigos científicos sobre a interceção entre a linguística aplicada e o processamento de linguagem natural.

Esteve seis anos no mundo académico, e ainda não tinha terminado o doutoramento quando foi contratada pela Microsoft. É lá que acaba por desenvolver as primeiras 26 línguas que a empresa criou para sistemas de comando e controlo de síntese de reconhecimento. A escolha de uma linguista para o lugar onde tradicionalmente veríamos outro tipo de profissional custou-lhe “várias amizades”, sobretudo “dos meus colegas engenheiros, que me diziam que não era qualificada para a função”.

Foi assim mesmo — se há coisa que não admite é que cerceiam a sua liberdade. Além disso, encontrava-se na posição privilegiada de perceber tanto de linguagem natural como de programação, porque “naquela altura a Inteligência Artificial não era data driven, mas ruled based. Então, era preciso fazer a ponte entre a programação das línguas em linguagem computacional. Os engenheiros, não tendo esse entendimento mais global da ciência das línguas, acabavam por não o conseguir fazer”, conta.

A Microsoft abriu-lhe horizontes, sobretudo pela sua capacidade atrair pessoas de diferentes áreas para as engenharias — e é com “esta fusão de de ideias que a inovação acontece”, diz. No entanto, tudo muda quando percebe que ao invés de programar máquinas é possível treiná-las com dados. Depois de sete anos na Microsoft, com uma filha de dois anos e acabada de sair de um divórcio, entende que é tempo de mudar de vida e aceita o desafio de integrar uma empresa muito mais pequena, a Voice Box, com cerca de 300 pessoas, como cientista de dados. Ali tinha “mais liberdade” para experimentar novas soluções, mas a principal aprendizagem foi outra: “numa empresa de 300 pessoas é mais ou menos uma questão de sobrevivência”, recorda. Tudo depende dos clientes, atrasar a entrega de um projeto ou adiar uma decisão pode ser fatal.

À medida que o tempo foi passando, tornou-se cada vez mais claro que estava na altura de lançar o seu próprio projeto, até porque o problema estava também cada vez mais claro na sua cabeça: para treinar Inteligência artificial são precisos dados de alta qualidade, escaláveis e em múltiplas línguas. Assim, em 2014, Daniela Braga acreditou que conseguia “fazer algo diferente e trazer a grande escala, os dados de qualidade e provar que crowdsourcing é a única maneira de trazer a diversidade e o unbias que é necessário num data set”. No ano seguinte fundava finalmente a Defined.ai.

Percebia o produto, sabia fazer pitch, mas faltavam-lhe competências de gestão, pelo que fez “uma busca por parceiros. Tinha uma ideia inicial de arrancar com quatro, mas terminei com apenas uma pessoa, a minha co-founder, que achei que tinha uma complementaridade de business que eu não tinha”, conta. Nove meses depois, todavia, estavam a “divorciar-se”. Além de terem visões muito diferentes sobre qual devia ser o futuro da empresa, a sua co-fundadora não estava a ser capaz de fechar o plano de negócio e levantar capital, o que fez com que Daniela Braga acabasse por assumir o papel de CEO. A rutura foi inevitável e com ela, assume, vieram muitas noites sem dormir em Seattle. “A verdade é que tive muita ajuda”, e essa ajuda “veio dos investidores que acreditaram em mim e que assumiram um papel muito ativo”, recorda.

Lançou-se então de cabeça ao desafio de gerir uma empresa que se dividia entre os EUA e Portugal. “Não é assim tão simples gerir duas culturas que me pareciam tão fáceis de misturar (…). A verdade é que tem sido um grande desafio gerir uma empresa entre os dois lados do Atlântico”, assume. Hoje, é a sua empresa que lidera o consórcio Accelerat.ai, uma aceleradora de inteligência artificial que é um dos grandes projetos investidos em Portugal no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência.

Desafios da vida de um founder

Desde os 17 anos que Daniela Braga vive sem rede de segurança e quando levantou “o primeiro milhão [para a Defined.ai] sabia que não havia volta a dar”. Já sem co-fundadora, mãe solo e estrangeira. “Apesar de me integrar bem na cultura americana, demorei uns cinco anos a achar que começava a ser aceite. Os EUA, no maravilhoso mundo que têm, também têm muita discriminação em relação a estrangeiros e pessoas diferentes. Sim, é possível fazer-se tudo o que se quer [nos EUA], mas à custa de muita autoconfiança e ignorando comentários”, conta.

Muitas vezes foi tratada como uma “cidadã de segunda”, ouviu piadas sexualizadas por ser mulher — “estás aqui porque chamas à atenção e não porque fazes o caminho e não desistes” — e teve investidores a duvidarem das suas capacidades para liderar uma empresa porque não passava de “uma cientista”. Estes foram os desafios que enfrentou por escolher um rumo diferente daquele que a sociedade tradicional tentava impor-lhe. Não gosta de pedir ajuda, ainda que a aceite “a medo”, e não duvida minimamente das suas capacidades e competências. Pelo caminho, aprendeu a encontrar uma maior harmonia entre corpo e mente — respeita horas de sono, come melhor, faz uma gestão mais eficiente entre a vida profissional e social, e não dispensa o exercício, “mesmo que isto implique cortar outros prazeres da vida ou uma uma reunião importante”. Esse equilíbrio, acredita, é fundamental para conseguir dar resposta às exigências várias da vida de um founder.

Quando olha para trás assume que seria mais fácil começar a sua empresa em Silicon Valley do que em Seattle — “mas eu não conseguia sustentar-me no ‘vale’ com o ordenado que conseguia pagar a mim própria no início da Defined.ai”, começa por dizer. Depois para, reflete e retoma a resposta: “talvez tivesse sido diferente, mas eu parti sempre em desvantagem, por ser mulher, percebida como cientista, imigrante…”, enumera. E talvez por isso sinta que pagou “sempre o preço pela liberdade, o preço por fazer o que me dá da gana e aquilo por que tenho paixão (…), porque não há nada que pague a minha liberdade”.

Mas em todas as decisões que tomou ao longo do percurso teve de lidar com risco de falhar, pelo que questionamos como lida com isso. “De um ponto de vista positivo e sem pensar duas vezes”, dispara. “Eu não me foco nas coisas que podem correr mal. Eu foco-me nas coisas que podem correr bem e na parte divertida de ir, porque o mais importante disto é a jornada. (…) O importante é falhar rápido e levantar rápido”, seja numa startup, seja a subir uma montanha.

Empreender no feminino

São poucas as mulheres que se destacam no mundo empresarial e nas startups não é exceção. Daniela Braga lembra que “há 20 anos que mantemos, nas áreas de inteligência artificial, a mesma distribuição entre homens e mulheres na academia”. Elas são apenas 20%. Quando olhamos para as áreas de STEM — Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, a “assimetria ainda é maior, e 45% desistem da carreira ao fim de um ano de trabalho”, diz.

A empreendedora acredita que “os próximos anos serão melhores” e atribui o caminho ainda por percorrer a uma certa “pré-formatação”. Elas “não são ensinadas a competir”, “a maternidade é uma dádiva maravilhosa, mas que atrasa a carreira”, “a inteligência feminina nunca foi cantada, mas a beleza sim”, há ainda uma inerente falta de confiança das mulheres em si mesmas, enumera. Por isso, e apesar de reconhecer que é uma posição “polémica”, defende que as quotas não só devem existir como devem ser cumpridas, porque “há um esforço social e de mindset que tem de ser feito, mas que demora muito tempo”. E não tem dúvidas: “as mulheres existem, elas estão é debaixo das pedras”.

Especial Únicos

O projeto “Únicos” propõe-se dar resposta à pergunta sobre o que torna uma empresa única e de que forma essa aprendizagem pode ajudar outras. Fizemo-lo num projeto em parceria com a Google e a Shilling que se divide em três iniciativas:

  • Uma série de televisão na SIC Notícias e na SIC Internacional, cuja estreia aconteceu a 2 de outubro e cujos episódios pode rever aqui;
  • Um conjunto de masterclasses com fundadores de startups portuguesas que se tornaram globais, onde estes partilham o seu percurso e aprendizagens, que pode encontrar aqui;
  • O Prémio “Únicos, que apoiará com mais de 150 mil euros (entre investimento e serviços Google) uma startup que possa vir a integrar esta nova geração de empresas portuguesas que são líderes ou candidatas a líderes nos mercados globais onde atuam.