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Uber Files: Para dominar e crescer, valeu quase tudo. De práticas ilícitas a lóbis políticos

por The Next Big Idea | 11 de Julho, 2022

Documentos internos da Uber obtidos pelo The Guardian e partilhados com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação revelam as estratégias da empresa para a sua expansão global entre 2013 e 2017 – mesmo que isso significasse contornar ou arranjar formas ilícitas para ludibriar autoridades.

Uma fuga de informação revela como a Uber conseguiu orquestrar uma teia de lóbi que envolveu “discretamente  primeiros-ministros, presidentes, bilionários, oligarcas e barões dos media”. Para além de memorandos internos, apresentações, notas e outros documentos reveladores, o “leak” inclui “e-mails, iMessages e trocas de mensagens via WhatsApp entre os mais altos executivos” de Silicon Valley.

De acordo com o jornal britânico The Guardian, foram obtidos mais de 124 mil documentos confidenciais, relativos ao período entre 2013 e 2017, e que substanciam provas de que:

  • Existiram tentativas de fazer lóbi com Joe Biden (à época vice-presidente dos EUA), Olaf Scholz (na altura presidente da Câmara de Hamburgo), Mark Rutte (então primeiro-ministro dos Países Baixos) e George Osborne (trabalhou no gabinete de David Cameron e foi editor do tablóide “Evening Standard”);
  • Emmanuel Macron, enquanto Ministro da Economia, Indústria e Assuntos Digitais (2014-2016), lidou pessoalmente com a situação da Uber em França durante os protestos dos taxistas em 2015;
  • Travis Kalanick, um dos fundadores e o CEO em funções da Uber durante os cinco anos dos documentos obtidos, além de transmitir aos seus executivos que a “violência garante sucesso”, tentou forçar a entrada da plataforma em várias cidades de todo o mundo, mesmo que isso significasse violar leis e os regulamentos em vigor (para os taxistas);
  • Durante as buscas aos escritórios da empresa, executivos deram ordens para avançar com o “Kill Switch”, termo utilizado para situações em que os sistemas são desligados durante este tipo de rusgas, normalmente ligadas a investigações que envolvem fraude, atos ilícitos ou fuga ao fisco. Desta maneira, garantiam que a polícia não tinha acesso aos dados que procuravam. Isto aconteceu pelo menos 12 vezes em França, Países Baixos, Índia, Hungria e Roménia;
  • Portugal, apesar de não estar na lista de ‘media partners’ da investigação, é um dos exemplos apresentados. O motivo: episódios de violência contra os motoristas da Uber em 2015.

Porque que é isto notícia? Tal como explica a Axios, o historial da Uber em desafiar ou ignorar as leis é algo reportado e documentado — inclusive alguns episódios foram retratados na série “Super Pumped: The Battle for Uber”, disponível em Portugal na HBO Max. A diferença é que esta investigação, conduzida por 40 meios de comunicação em 29 países, dá detalhes de como a empresa o fez. 

Ou seja, esta investigação surge na sequência de alegações anteriores, aprofundado as situações sobre:

  • A utilização de tecnologia para camuflar ou esconder dados à polícia durante rusgas;
  • A Uber tentou procurou tirar proveito das notícias e relatos de violência contra os condutores da Uber (episódios como o de Marselha ou em Portugal, em 2015);
  • O facto de a empresa canalizar fundos através de paraísos fiscais, incluindo as Bermudas;
  • Lobista ligado à Uber terá cortejado oligarcas “ligados ao Presidente russo Vladimir Putin”, que recentemente foram sancionados devido à invasão da Ucrânia.

O que diz a Uber e o ex-CEO: A plataforma e um representante de Kalanick já reagiram em comunicado.

  • Da Uber, um porta-voz assume (e não nega) os erros do passado, mas lembra que a empresa passou por uma grande transformação desde que Dara Khosrowshahi assumiu o papel de CEO em 2018. 
  • De Kalanick, a reação chega igualmente através de um porta-voz, que dá conta de que o homem forte da Uber nunca “autorizou quaisquer ações ou programas que pudessem obstruir a justiça” em nenhum país, incluindo a Rússia, onde “teve um envolvimento muito limitado nesses planos de expansão”.

Portugal, exemplo de violência 

O The Washington Post, um dos ‘media partners’ nesta investigação, deu o exemplo de Portugal, nomeadamente por ter sido cá que ocorreu, em 2015, uma série de “atos de violência”.

  • Nesse ano, existem vários relatos de episódios de agressões de taxistas a motoristas da Uber, sendo que um deles até teve de ser hospitalizado;
  • Em julho, Rui Bento, à altura gestor da Uber em Portugal, aparece citado num ‘e-mail’ a colegas a dizer que a empresa estava “a ponderar” mostrar aos jornais o que se estava a pensar. Isto, numa altura em que a ANTRAL, a maior associação de taxistas em Portugal, procurava contrariar a estratégia de expansão da Uber;
  • Em resposta, o diretor de comunicação da Uber em Portugal sugeriu fazer uma investigação ao presidente da ANTRAL, Florêncio Almeida, para arranjar algo “sexy” para os media nacionais e denegrir a sua imagem pública.

Resumo: O plano começou a ser desenhado em 2015, quando a Uber percebeu que podia beneficiar com os atos de violência contra os seus motoristas, ganhando a simpatia da opinião pública e força de negociação junto dos governos. O episódio de violência descrito acima passou-se em Portugal, mas verificou-se o mesmo em outros países como França ou Países Baixos.

As figuras: envolvimento de Marcon e Biden

Em 2022, são ambos presidentes de duas das nações mais poderosas do mundo. Emmanuel Macron lidera a França, Joe Biden os Estados Unidos. Na altura dos episódios descritos nos documentos vazados, o francês era ministro da Economia, o americano vice de Barack Obama. 

Por que estão envolvidos nesta investigação? Segundo reporta a Axios, Biden parece ter “afinado” um discurso em Davos (2016) após uma reunião com Travis Kalanick. 

  • O discurso elogiou a empresa por dar aos seus empregados a “liberdade de trabalhar quantas horas quiserem, gerir as suas próprias vidas como quiserem”.
  • Biden parece igualmente ter revelado uma trajetória de progressiva proteção dos interesses da empresa.

Por seu turno, um lobista da Uber descreveu o Presidente Macron como um “verdadeiro aliado”, por:

  • Ter ajudado num acordo com os legisladores do seu gabinete que se opunham à Uber;
  • Ter alegadamente intervido após a Uber ser proibida de atuar em Marselha. Numa mensagem de texto, de acordo com a investigação, Macron terá afirmado que ia “olhar” para o assunto “pessoalmente”. E, rematou o tema, escrevendo: “Para já, fiquem calmos”.