Aparecer na televisão nem sempre é uma boa notícia
por Miguel Magalhães (Texto) | 21 de Dezembro, 2021
Aparecer numa série de televisão costuma ser uma boa notícia para uma marca. Ter figuras reconhecidas pelo público a utilizar os seus produtos é uma forma de gerar interesse e, se tudo correr bem, receitas. Mas e se uma das personagens morrer a utilizar o produto? Foi isso que aconteceu com a Peloton e “And Just Like That…” (o regresso de “O Sexo e a Cidade”).
Há duas semanas, os fãs de “O Sexo e a Cidade” puderam regozijar-se com o regresso de algumas das suas personagens favoritas com a estreia de “And Just Like That…” na HBO Portugal. Esta nova versão da série inclui muitas das caras originais e coloca o elenco numa situação bastante diferente daquela que estavam há mais de 20 anos, quando foram apresentadas às audiências. Ainda de uma classe privilegiada e ainda a viver em Nova Iorque, Carrie Bradshaw e as amigas têm agora vidas estáveis que, se formos honestos, já não dariam bom conteúdo televisivo.
No entanto, o final deste primeiro episódio (spoiler alert) trouxe a morte de uma das personagens mais queridas do universo da série, Mr. Big, que, momentos depois de ter feito um workout numa “bicicleta caseira”, teve um ataque cardíaco ao qual não sobreviveu. Uma desfeita para os fãs de “O Sexo e a Cidade”, que não estavam à espera que isto acontecesse. Uma desfeita ainda maior para a Peloton, empresa americana de fitness responsável pelas ditas bicicletas que, de um dia para o outro, viu o seu valor de mercado diminuir cerca de 15%.
Bem sabemos que as variações nos mercados financeiros são o resultado de uma série fatores, mas, pelas redes sociais e pelos principais meios americanos, a justificação para a queda abrupta do preço das ações da Peloton era fácil de identificar: as milhões de pessoas sentadas à frente da televisão ou de um computador para ver a estreia de “And Just Like That…” tinham decidido, após aquele final trágico, que a bicicletas da Peloton não eram de confiança e isso refletiu-se na sua valorização em Bolsa.
A reação da empresa não tardou e num comunicado às redações ficámos a saber duas coisas, umas delas dignas de um sketch de comédia:
- Primeiro, a Peloton informou que tinha de facto assinado um contrato com a HBO para ter algumas das suas bicicletas aparecer na série, mas que, por motivos de confidencialidade da história, o serviço tinha deixado de fora o contexto em que iam ser utilizadas (ou então porque sabia que se dissesse algo dificilmente contaria com alguma das bicicletas).
- Segundo (e preparem-se), deu-se ao trabalho de explicar o “porquê” de Mr. Big, uma personagem fictícia, não ter falecido devido à sua bicicleta, mas sim “ao seu estilo de vida extravagante que incluía cocktails, charutos e grandes bifes”, relembrando um episódio cardíaco que já tinha enfrentado na temporada 6 da série original. Não satisfeita, a Peloton acrescentou ainda que, quanto muito, a sua bicicleta tinha ajudado Mr. Big a viver mais tempo.
Dizem as leis de retratamento público que, quando uma empresa se sente tentada a justificar as ações ou a morte de alguém que pertence à ficção, é porque está seriamente preocupada com as implicações que isso pode ter no seu negócio. E a Peloton tinha razões para tal. E depois do desconfinamento? Fundada em 2012, desde a sua origem, os clientes-alvo da Peloton eram um segmento com algum poder de compra, disposto a pagar 2 mil dólares pelas suas bicicletas inovadoras. Contudo, a pouco e pouco, a empresa foi evoluindo e passou a ter como missão tornar-se na “Netflix do Bem-Estar”. Por outras palavras, além dos equipamentos, a partir de 2018, a empresa começou também a disponibilizar um serviço de streaming de workouts, cuidadosamente desenvolvidos por personal trainers e por uma vasta equipa de produção, que lhe permitiam chegar a um grupo mais vasto de consumidores. Inclusive, a Peloton estabeleceu algumas parcerias com artistas como a Beyoncé, para que workouts específicos fossem criados ao som da sua música e atraíssem os fãs que a utilizavam para fazer exercício físico. Em março de 2020, os sucessivos confinamentos foram bons para a empresa e colocaram-na noutro patamar. Fechadas em casa, sem gastar dinheiro em ginásios ou lazer, cada vez mais pessoas escolheram a Peloton como o seu parceiro de fitness, o que aumentou exponencialmente as suas vendas e o seu valor de mercado que, até ao fim do ano, iria aumentar cerca 600%. Mas, entretanto, no início de 2021, as pessoas voltaram a sair à rua e as bicicletas que tinham sido a melhor companhia eram agora substituídas por ginásios (ou interação humana) e ficavam a apanhar pó numa das divisões da casa. E isto fez soar os alarmes nos escritórios da Peloton.
- Este ano, a empresa já perdeu dois terços do valor de mercado que apresentava no final de 2020;
- De acordo com os resultados financeiros que apresentou para o terceiro trimestre deste ano, as receitas diminuíram em 17% face ao período homólogo;
- Atualmente, o preço das bicicletas da Peloton já é cerca de 25% inferior ao que era no ano passado e muitas delas já são vendidas com um desconto ainda mais significativo em mercados secundários de ecommerce;
- A meio deste ano, a empresa já passara pela sua dose de polémica, depois de um acidente fatal com uma criança, a ter obrigado a recolher 125 mil bicicletas nos EUA.
Por todas estas razões, a Peloton não se podia dar ao luxo de não dar uma resposta assertiva à polémica com a HBO. E foi por isso que chamou Ryan Reynolds. Um anúncio em tempo recorde que fez ricochete O ator canadiano tem a sua própria agência de marketing, a Maximum Effort, e já nos habituou a campanhas bem humoradas para os seus filmes ou para as marcas das quais é parcialmente dono, como a Aviation Gin ou a Mint Mobile. Essa fama fez com que fosse a pessoa a quem a Peloton recorreu para desenvolver um anúncio que pudesse de alguma forma amenizar as perceções mais negativas que tinham sido criadas à volta do seu produto. Em apenas 48h após a estreia de “And Just Like That…”, um anúncio com Mr. Big a anunciar que estava bem de saúde (e com toda uma nova storyline entre o universo da série e a marca) já circulava por todo o lado, alcançando milhões de pessoas. O assunto parecia resolvido e o preço das ações da empresa regressou a um nível próximo daquele anterior à polémica. Só que, uns dias mais tarde, a sorte da empresa foi novamente amaldiçoada. Chris Noth, ator que protagonizou Mr. Big ao longo de todos estes anos, foi acusado por duas mulheres de assédio sexual, o que obrigou a Peloton a retirar os anúncios e a afastar-se novamente do ator, que desmentiu as acusações de que é alvo. Não têm sido meses fáceis para a empresa americana, que tem enfrentado diversas dores de crescimento. Não é de esperar que acabe a apanhar pó e esquecida como algumas das suas bicicletas, mas fica a questão de se não foi um negócio que atingiu um certo patamar num determinado contexto, ao qual dificilmente irá voltar. Para isso acontecer, provavelmente significaria más notícias para todos nós, de uma forma geral.